segunda-feira, 16 de maio de 2016

Se beber, não redija!

     Naquele tempo existia em São Paulo a Central de Polícia. Ficava no Pátio do Colégio. Ali eram centralizadas cópias de todos os B.O.s (boletins de ocorrências) de roubos, crimes, desentendimentos e encrenca de todo o tipo originários das várias delegacias da capital paulista. Por isso, no final do dia jornalistas que cobriam polícia iam buscar os casos mais impactantes para redigir matérias que viravam notícias nos jornais  em que trabalhavam. Funcionou assim até meados da década de 1960, por  aí...

     Havia na Central uma sala equipada com máquinas de escrever (lembra-se delas?) para uso dos repórteres policiais, a maioria  em início de carreira. Não existia ainda faculdade de jornalismo. Começava-se trabalhar em jornal cobrindo polícia. Todo final de tarde os repórteres passavam por lá, mariscavam notícias nos B.Os. e serviam-se das máquinas de escrever para uma redação prévia do que selecionavam nos boletins. Geralmente cada texto era datilografado mais de uma vez antes do texto final, o que gerava grande número de rascunhos abandonados pelas mesinhas depois que o pessoal ia embora. Ninguém amassava e jogava no lixo, talvez por respeito aos trabalhos ou aos próprio textos, sabe-se lá. Era costume, assim.

     Um dos colegas, cujo nome esqueci – só me recordo seu apelido: “Chichilo” –, ficava mais tempo num boteco próximo tomando cerveja do que na Central. Quando todos já haviam selecionado as ocorrências e forrado as mesas com as sobras de textos, chegava Chichilo e vasculhava os escritos dos colegas para montar “sua” matéria. Ele quase nunca se dava ao trabalho de consultar os boletins policiais.

Certo fim de tarde, ele espichou o papo, exagerou na cerveja e demorou mais que de costume. Chegou à Central quando os últimos colegas já estavam de saída. Chichilo iniciou a catança habitual e leitura dos rascunhos na maior afobação. Eis que de repente depara com o registro de um fato “cabeludo”, daqueles de estourar em manchete: Um suplente até então fortemente suspeito de haver matado o vereador titular para assumir sua vaga na câmara, confessara o crime. "Fui eu sim", começava teatralmente o texto. Estava ali escrita a notícia todinha em espacejamento simples, cheia de detalhes, com frases de delegado, da viúva da vítima, de todos os envolvidos e ditos lamuriosos do criminoso arrependido. Chichilo nem leu até o fim, já era muito até onde havia chegado. Por causa do adiantado da hora, o repórter juntou a papelada e decidiu terminar de ler o texto lá na redação do jornal em que trabalhava para “segurar” a edição, ouvir alguém por telefone, se fosse necessário, e garantir bom espaço na edição do jornal.

Chichilo não deu sorte. Chegou à redação quando a edição do jornal estava praticamente fechada para ser impressa. Haviam terminado os textos mais cedo para colaborar com a oficina de manutenção da máquina impressora que apresentava defeitos desde a noite anterior. Os mecânicos precisavam de tempo para o reparo.
O repórter malandro resolveu teatralizar, mais para disfarçar o atraso de sua chegada que por zelo profissional. Dramatizou, o que pode com lamentos do tipo “tanto trabalho perdido com o levantamento da notícia para nada" etc. sem sucesso. Até que virou as costas e saiu dali bufando. Largou em cima da mesa, sem perceber, os papéis que trouxera da Central elaborado por colegas de outras redações.
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No dia seguinte, um portador levou até ele, bem cedo, uma convocação por escrito para que comparecesse ao jornal às 9h (o expediente começava sempre por volta das 14h) para acertar as contas porque seria demitido. Chegando lá, dirigiu-se à sala da chefia furioso (o chefe chegava cedo), com medo, mas sem entender com clareza a razão pela qual perderia o emprego. Entrou na sala do chefe já se explicando dizendo que não via motivo ir para a rua só por ter levado “um furo”. Nem sabia o jornal iria fechar mais cedo etc.. "Que culpa tive do jornal encerrar a edição mais cedo sem ninguém me avisar?", lamentava. O chefe foi logo interrompendo a lenga e falou duro: “Fica frio, não houve nenhum furo; ninguém publicou essa matéria”, explicou entregando um dos rascunhos que Chichilo abandonara na  véspera para que o lesse.
Foi aí que Chichilo entendeu. Os colegas, enquanto ele bebericava no bar, inventaram a notícia e largaram o texto de propósito sobre uma das mesas em local bem visível para que ele o lesse. Uma pegadinha até que leve, pois ali mesmo, no rodapé da folha escrita que servira de isca (que Chichilo não havia lido até o fim por causa da pressa) estava o desmentido: “Esta notícia é fria, seu palerma, pra ver se você deixa de abusar da gente. De hoje em diante, quando for beber, não redija – não às nossas custas!”, advertia autor do texto. Para azar dele, o chefe havia lido o rascunho na íntegra.

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