terça-feira, 31 de maio de 2016

Maneira sherlockiana de apreciar arte. Participe


Moça com livro, de Almeida Júnior (clique na imagem para aumentá-la)


— “Como está?” — disse Sherlock Holmes cordialmente ao ser apresentado ao Dr. Watson pelo amigo comum Stamford — “Vejo que andou pelo Afeganistão”, completou Holmes que nunca antes havia visto o médico nem nunca soube da sua existência. Dias mais tarde o detetive explicou a “adivinhação” ao intrigado agora amigo (os dois passaram a morar juntos no famoso endereço da Baker Street, 221B, em Londres). Tratava-se de mais um ato de “Ciência da dedução” praticado pelo mais famoso detetive londrino.

Holmes afirmava categoricamente que um homem observador pode penetrar nos mais íntimos pensamentos de outra pessoa. Bastava para isso um exame preciso de uma expressão momentânea, da contração de um músculo ou uma olhadela do interlocutor. “A partir de uma gota d’água”, explicou, um praticante da ciência da dedução, como ele, “pode inferir a possibilidade de um Oceano Atlântico ou das cataratas do Niágara, sem ter visto ou ouvido falar de qualquer dos dois.

Assim, revelou porque adivinhara, quando o viu pela primeira vez, que Watson tinha estado no Afeganistão: Veio-me à mente que ali estava um homem com jeito de médico, mas com ar de militar. Claramente um médico do Exército, portanto ele acaba de chegar dos trópicos, pois seu rosto está escuro e essa não é a tonalidade natural de sua face, pois seus punhos são claros. Ele passou por penúrias e doenças, como seu rosto abatido revela sem dúvidas. Foi ferido no braço esquerdo, pois o mantém numa posição rígida e pouco natural. Onde nos trópicos um médico do Exército poderia ter encontrado tantas privações e sido ferido no braço? Claramente no Afeganistão. Todo o encadeamento de ideias não demandou um segundo. Comentei então que você vinha do Afeganistão e o deixei pasmo”, completou.

Por que relembrei essa passagem do livro “Um estudo em vermelho”, do escritor Arthur Conan Doyle, quando ele relata o primeiro encontro de Sherlock Holmes com o Doutor Watson? Porque tive a oportunidade de conhecer dias atrás a maneira sherlockiana de apreciar arte pela “Ciência da dedução”, praticada no livro pelo detetive e quero passá-la para você em tom de desafio. Consiste no seguinte:
Faça uma análise do quadro que ilustra esta matéria - - de Almeida Júnior à maneira sherlockiana e mande para o e-mail desafio350@gmail.com (copie daqui e cole no e-mail), pode ser como anexo ou no corpo do próprio e-mail e que tenha no máximo 350 palavras. Os melhores eu vou publicando neste blog na medida em que vão chegando. Depois de certo tempo, marcamos a data do encerramento. O campeão terá a análise publicada no blog e num jornal impresso de Jacareí. Pode ser uma análise séria ou em tom jocoso, desde que seja criativa e de bom gosto. Vai encarar? Comece, então a escrever.


Para esquentar e servir de exemplo, segue abaixo uma análise semelhante à proposta feita do quadro “Caipira picando fumo”, do mesmo Almeida Júnior. Mãos à obra.

 A luz incidente, quase a pino, retratada na composição, sugere o horário entre 11 e 13 horas. O caipira picando fumo, ritual demorado, reforça a chance de que já tenha almoçado. 
A temperatura está de amena para fria. Veja as mangas compridas e uma segunda calça vestida por baixo. A camisa aberta ao peito, talvez,para refrescar àquela hora de sol mais forte. Provavelmente ele tenha enfrentado em pasto fechado para pegar algum animal de abate. Nota-se as partes inferiores das calças e as pontas das mangas da camisa manchadas de um vermelho que pode ser sangue do animal abatido. Essa probabilidade é reforçada pelo tamanho desproporcional da faca usada para picar fumo. 
O personagem vive só. Parece viúvo ou separado da mulher por iniciativa dela. Isso explicaria o ar meio tristonho e pensativo na fisionomia dele. Tal possibilidade é reforçada pelo total desleixo tanto para com ele e pela conservação da casa de pau a pique. Na moradia,parte do reboco está caída ou é inexistente e o barro aparente denuncia o tempo em que a situação está assim. Mulher nenhuma deixaria as coisas permanecerem desse jeito sem tomar uma providência de reparo.
Veja a escada. Ela é formada por pedaços grandes de tronco de árvore cortados aleatoriamente em tamanhos disformes e com acabamento suficiente apenas para que alguém passe por cima deles. Vê-se que o degrau menor está quase no nível do segundo. É um perigo descer por uma escada desse tipo. E o homem bebe. Essa ponta de nariz mais avermelhada e as pálpebras “pesadas” denunciam a bebida.
O restante segue sem qualquer alinhamento. Esses madeiros estão escorados sem nenhum critério por troncos menores. Há dois buracos grandes, um na parede outro ao lado da escada cujo reparo teria sido fácil já que a matéria prima é terra misturada com água. Não há indícios de que venta. Então, as palhas de milho secas, para fazer cigarros, espalhadas pelo chão à volta do caipira é displicência mesmo, reforçada pela porta da casa semiaberta.
(340 palavras)

sexta-feira, 27 de maio de 2016

Calçadas formidáveis, pedaços de mau caminho e mesóclises do “presidento”

Calçada com ladrilhos portugueses: quebrou, estragou

Naquele tempo, anos 1960, “pedaço de mau caminho” era referência "gracinhosa" a mulher sedutora. Hoje leio a expressão usada como crítica ferina, embora procedente, em crônica do acadêmico José Luiz Bednarski na coluna O quinto poder”, publicada no Diário de Jacareí. O autor refere-se às calçadas esburacadas ou descuidadas na região central da terra afonsina¹, mas poderia ser de qualquer outro município. Todas as ruas antigas de cidades interioranas sofrem de males como estreiteza de ruas, calçadas em que mal passam duas pessoas e desinteresse do poder público e de moradores em cuidar delas. Dos moradores também. O domínio do espaço é do município que as constrói, mas a obrigação de conservá-las é dos moradores. As prefeituras têm ainda, em muitos casos, de optar entre facilitar a passagem aos automóveis ou aos pedestres. Os governantes antepassados parece que imaginavam que o tempo das carroças nunca terminariam.

Depois vieram aqueles ladrilhos portugueses que precisam ser colocados de caco em caco no passeio público por mãos que entendem, ou melhor, entendiam da arte. Essas pedras com status de ladrilhos acabam por se tornar “ladrilhos brasileiros” na medida em que se quebram ou são quebrados e ninguém acerta mais a situação. Os reparos como mostram fotos, são desastrosos. Procure no “Google” em “calçadas ruins” e, depois que abrir, clique em “imagens”² para conferir como Bednarski foi bonzinho no que escreveu no jornal. Parece que nenhum “calçadeiro”, se é que existe a função, acerta esse trabalho hoje em dia. Em muitos casos passam uma camada de reboco por cima do estrago e “estamos conversados”. Em outros locais são calçadas muito inclinadas ou em degraus ou, ainda, estranguladas por um poste ou uma árvore. É quase impossível andar a pé por elas. Há também calçadas desencontradas, outras obstruídas como se “passeio público” fosse apenas força de expressão e não um substantivo concreto, embora quebrado na prática. As cidades estão cheias desses “pedaços de mau caminho” como as denominam com propriedade o colunista acadêmico.

 A intenção deste artigo era, inicialmente, mostrar como o tempo muda o sentido das palavras. “Formidável”, quando eu era estudante do ensino fundamental na primeira metade do século passado (1947, por aí) significava “horroroso, horrível, assustador, pavoroso, amedrontador”. Hoje significa “impressionante, excelente, fantástico, que merece admiração pela sua excelência”, como registram os dicionários. "Passeio público" é palavra que parece seguir caminho inverso. A diferença é que naquele tempo fenômenos assim (mudança de sentido das palavras) eram raros e muitos até se tornavam curiosidades para estudos em aulas de português ("linguagem", dizia-se na época). Como se hoje ao invés de consertarmos as calçadas mudássemos o nome delas para, digamos, “passagens radicais” e ficaria tudo bem.

Até hoje, governantes de qualquer dos níveis não tinham mandatos ameaçados por surrupiar dinheiro público, descuidar das calçadas ou da linguagem. Durante anos ouvimos, inertes, gente graúda e servil falar “presidenta”, “mulher sapiens”, “ocê” e barbaridades do gênero. Foi preciso a descoberta de um escândalo como nunca antes visto neste país ameaçar o futuro de nossos filhos e netos para um início de reação.

Como já foi afastada uma “presidenta” em nome do descuido para com o caixa do tesouro, de quebra, temos um “presidento” que diz castiçamente “consertá-lo-ei” e outras mesóclises do purismo linguístico, é de se concluir que, pela lógica, passaremos a ter, pelo menos, calçadas melhores nas vias públicas do interior. Acho que o mundo ainda tem jeito, Bednarski. 
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¹Terra afonsina -  alusão a Antônio Afonso, suposto fundador de Jacareí.
²Ou copie e cole a linha seguinte no campo de endereçamento:  https://www.google.com.br/search?q=cal%C3%A7adas+ruins&espv=2&biw=780&bih=404&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwi16c_zvfrMAhWGvJAKHVDPBHUQ_AUIBigB 

sábado, 21 de maio de 2016

O deputado devolve potinhos vazios



Se existe uma coisa que me mata de vergonha é me sentir inoportuno. Há cerca de dois meses, fui recebido por Esther e Doutor Nelson Rosado na aconchegante vivenda de ambos em Jacareí. Em se tratando desse casal, escreve-se vivenda mesmo – no mínimo morada – para dar ideia do clima local. Assim, dizia eu, fui recepcionado nessa morada onde convivem flores, folhagens decorativas, pássaros cantantes, borboletas coloridas e duendes inspiradores de fantasias literárias.

Parei pouco. O tempo necessário para uma pequena entrevista com Nelson, policiando-me para que embalado na conversa não perdesse a noção do tempo. Não queria me sentir atrapalhando, pois, quando cheguei, havia outro visitante ilustre na casa, mais o filho do casal. Demorei pouquinho mais que o necessário para entrevistar o promotor. Terminado, anunciei que estava de saída e, sob protestos elegantes de Esther e Nelson, na despedida tive grata surpresa: ofereceram-me levar doces feitos por eles acondicionados em dois potinhos que me emprestavam. Lembrei-me, nostálgico, que no século passado era comum esse gesto de brindar uma visita à saída com guloseima feita em casa, uma prática que prolongava o prazer da visita.

A satisfação da visita só terminava na devolução das vasilhas, no meu caso os potinhos. Pelo caminho rememorei essas práticas que impunha regras gostosas de cumpri-las. Exemplo? jamais devolver os potinhos vazios. Deveria fazê-lo com petiscos à altura. Perdeu-se muito desse costume, infelizmente. As pessoas cada vez menos recebem potinhos com doçuras quando vão à casa de alguém. O ritual dessas hoje raras visitações de cortesia ficou mais pobre. A gente percebe isso no reflexo em seus textos mais recentes da Esther. Ela não tem mais escrito, sonhadora, sobre saxofonistas solitários tocando numa tarde ensolarada na calçada em frente ao Banco do Brasil para quebrar a chatice do trânsito engarrafado.

Ao contrário, li, dia destes, um texto em que Esther fazia críticas à situação atual do país e citava Cícero, em Latim, claro, para dizer que o presidente afastado da Câmara, Eduardo Cunha, abusa demais de nossa paciência ao negar evidentes faltas graves cometidas (Esbravejar em latim é chique demais). Pois é, Esther, está difícil até escolher a iguaria para devolver nas embalagens. Eu que o diga! Acho que Cunha devolve vazios os potinhos que lhe emprestam. Se é que se lembra de devolvê-los.


segunda-feira, 16 de maio de 2016

Se beber, não redija!

     Naquele tempo existia em São Paulo a Central de Polícia. Ficava no Pátio do Colégio. Ali eram centralizadas cópias de todos os B.O.s (boletins de ocorrências) de roubos, crimes, desentendimentos e encrenca de todo o tipo originários das várias delegacias da capital paulista. Por isso, no final do dia jornalistas que cobriam polícia iam buscar os casos mais impactantes para redigir matérias que viravam notícias nos jornais  em que trabalhavam. Funcionou assim até meados da década de 1960, por  aí...

     Havia na Central uma sala equipada com máquinas de escrever (lembra-se delas?) para uso dos repórteres policiais, a maioria  em início de carreira. Não existia ainda faculdade de jornalismo. Começava-se trabalhar em jornal cobrindo polícia. Todo final de tarde os repórteres passavam por lá, mariscavam notícias nos B.Os. e serviam-se das máquinas de escrever para uma redação prévia do que selecionavam nos boletins. Geralmente cada texto era datilografado mais de uma vez antes do texto final, o que gerava grande número de rascunhos abandonados pelas mesinhas depois que o pessoal ia embora. Ninguém amassava e jogava no lixo, talvez por respeito aos trabalhos ou aos próprio textos, sabe-se lá. Era costume, assim.

     Um dos colegas, cujo nome esqueci – só me recordo seu apelido: “Chichilo” –, ficava mais tempo num boteco próximo tomando cerveja do que na Central. Quando todos já haviam selecionado as ocorrências e forrado as mesas com as sobras de textos, chegava Chichilo e vasculhava os escritos dos colegas para montar “sua” matéria. Ele quase nunca se dava ao trabalho de consultar os boletins policiais.

Certo fim de tarde, ele espichou o papo, exagerou na cerveja e demorou mais que de costume. Chegou à Central quando os últimos colegas já estavam de saída. Chichilo iniciou a catança habitual e leitura dos rascunhos na maior afobação. Eis que de repente depara com o registro de um fato “cabeludo”, daqueles de estourar em manchete: Um suplente até então fortemente suspeito de haver matado o vereador titular para assumir sua vaga na câmara, confessara o crime. "Fui eu sim", começava teatralmente o texto. Estava ali escrita a notícia todinha em espacejamento simples, cheia de detalhes, com frases de delegado, da viúva da vítima, de todos os envolvidos e ditos lamuriosos do criminoso arrependido. Chichilo nem leu até o fim, já era muito até onde havia chegado. Por causa do adiantado da hora, o repórter juntou a papelada e decidiu terminar de ler o texto lá na redação do jornal em que trabalhava para “segurar” a edição, ouvir alguém por telefone, se fosse necessário, e garantir bom espaço na edição do jornal.

Chichilo não deu sorte. Chegou à redação quando a edição do jornal estava praticamente fechada para ser impressa. Haviam terminado os textos mais cedo para colaborar com a oficina de manutenção da máquina impressora que apresentava defeitos desde a noite anterior. Os mecânicos precisavam de tempo para o reparo.
O repórter malandro resolveu teatralizar, mais para disfarçar o atraso de sua chegada que por zelo profissional. Dramatizou, o que pode com lamentos do tipo “tanto trabalho perdido com o levantamento da notícia para nada" etc. sem sucesso. Até que virou as costas e saiu dali bufando. Largou em cima da mesa, sem perceber, os papéis que trouxera da Central elaborado por colegas de outras redações.
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No dia seguinte, um portador levou até ele, bem cedo, uma convocação por escrito para que comparecesse ao jornal às 9h (o expediente começava sempre por volta das 14h) para acertar as contas porque seria demitido. Chegando lá, dirigiu-se à sala da chefia furioso (o chefe chegava cedo), com medo, mas sem entender com clareza a razão pela qual perderia o emprego. Entrou na sala do chefe já se explicando dizendo que não via motivo ir para a rua só por ter levado “um furo”. Nem sabia o jornal iria fechar mais cedo etc.. "Que culpa tive do jornal encerrar a edição mais cedo sem ninguém me avisar?", lamentava. O chefe foi logo interrompendo a lenga e falou duro: “Fica frio, não houve nenhum furo; ninguém publicou essa matéria”, explicou entregando um dos rascunhos que Chichilo abandonara na  véspera para que o lesse.
Foi aí que Chichilo entendeu. Os colegas, enquanto ele bebericava no bar, inventaram a notícia e largaram o texto de propósito sobre uma das mesas em local bem visível para que ele o lesse. Uma pegadinha até que leve, pois ali mesmo, no rodapé da folha escrita que servira de isca (que Chichilo não havia lido até o fim por causa da pressa) estava o desmentido: “Esta notícia é fria, seu palerma, pra ver se você deixa de abusar da gente. De hoje em diante, quando for beber, não redija – não às nossas custas!”, advertia autor do texto. Para azar dele, o chefe havia lido o rascunho na íntegra.

sábado, 14 de maio de 2016

O promotor que quis ser árvore

Texto de José Luiz Bednarski (*)
Poucos promotores de Justiça ousaram permanecer tanto tempo no mesmo cargo quanto Nélson Garcia Rosado. A titularidade gera um desgaste constante e a maioria prefere respirar novos ares de tempos em tempos. Contam-se nos dedos de uma das mãos (talvez a do Lula) os que ousaram ultrapassar o patamar da inamovibilidade do nosso querido Doutor Nélson

Um exemplo marcante foi Alcides Fidélis, promotor público de Ilha Longa por 42 anos. Ingressou no cargo ainda jovenzinho peralvilho¹, pouco antes do suicídio de Vargas², e no mesmo gabinete permaneceu até se aposentar depois da criação do “tijolão” tela verde e da volta do fusca, no governo Itamar³.

Em seguida, Alcides comprou um veleiro e abraçou de vez o estilo caiçara, dedicando-se com afinco à pesca em alto-mar. Para longas jornadas, levava seu livro preferido - O velho e o mar, de Hemingway¹¹ - e de lá só voltava depois de fisgado um peixão embarcado a guindaste.

A aventura durou anos a fio. Não cessou nem mesmo quando descoberto o maligno tumor. Sem chance de cura, o promotor jubilado aproveitou os estimados seis meses de sobrevida para adiantar o inventário, parcelar a cremação, distribuir as disposições de última vontade e, naturalmente continuar pescando.

A notícia da morte iminente da figura ilustre espalhou-se pelo vilarejo. Fidélis evitou salamaleques e solenidades, alegando pescarias agendadas. Porém, seu genro era prefeito e da derradeira homenagem o paciente terminal não escaparia. Era só o paciente escolher entre batizar uma avenida ou escola com seu nome.

O velho acusador não precisou pensar muito. Via pública e liceu não queria porque detestaria ter seu nome associado a crimes educacionais e buracos asfálticos. Já que era obrigado a escolher, queria mesmo era ser nome de árvore. E assim foi feita sua vontade ao pé de uma figueira em frente ao mar de 74 quilômetros daquele balneário.

Anos depois, o mar ficou marrom. Pelo cheiro de esgoto o povo tinha certeza de que era poluição. Para a municipalidade, era excesso de folha, e cortaram todas as árvores da orla. Só uma foi poupada: a que tinha um nome a zelar.
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¹peralta, que mantém alguns traços da personalidade jovem, mas já assumindo a fase adulta.
²Getúlio Vargas, presidente da República de 31 de novembro de 1930 a 29 de outubro de 1945. Depois, na época citada no texto, presidente da República de 31 de janeiro de 1951 a 24 agosto de 1954.
³Itamar Franco, presidente da República de outubro de 1992 a janeiro de 1995.
¹¹Ernest Hemingway – Escritor norte-americano, Nobel de literatura de 1954, famoso pelo livro “O velho e o mar” (1952), “Adeus às armas” (1929) e “Por quem os sinos dobram” (1940), inspirado na revolução espanhola (1936 a 1939) da qual  foi  correspondente de Guerra pelos Estados Unidos da América.

(*) José Luiz Bednarski é promotor de Justiça, da Cidadania e do  Consumidor em Jacareí SP, e membro da Academia Jacarehyense de Letras.

sexta-feira, 13 de maio de 2016

Haikai, minas e Mamonas

Matsuo Bashô
ditou regras para os versos dos haikais 


Dizem os textos que o japonês Matusuo Bashô (1644 – 1694) meditava em certa tarde sentado num almofadão em seu jardim de flores de cerejeiras. Ao lado dele estava a namorada, Sumiko, quando, provocado pela doce paz do momento, “bachô” em Bashô um sono danado que lhe tirou o equilíbrio. Com a queda, ele só teve tempo de dizer assustado: “Ai! Cai! Minashiguri!”, antes de amassar o nariz no seu fofo e verde gramado importado da Mongólia.

Como as grandes dores mudam o mundo, as pequenas têm o direito de mudar a poesia. Aquele desastrado momento inspirou em Bashô a ideia de dedicar-se intensamente ao “hai kai”, ou “haikai”, como se vê, palavra originária de “ai, caí! que passou a ser escrita com “k” para dar um toque de sofisticação e disfarçar a origem banal de uma queda de nariz no chão.


Quanto ao “minashiguri”, também gritado por Bashô na hora do desequilíbrio, não havia explicação unânime até o final do século passado. Para mantê-lo na memória até dar-lhe um sentido prático, Bashô batizou com esse nome seu primeiro livro de haikais: “Minashiguri”. Coube ao saudoso Dinho, poeta e compositor do grupo “Mamonas Assassinas”, solucionar o mistério. Segundo ele, o descuidado japa ao cair da cadeira gritou, em vão, para a namorada que estava ali perto: “mina, segure!”

Matsuo Bashô era rigoroso amante da concisão e da objetividade, embora seus inimigos (quem não os tem?) garantiam que ele tinha mesmo era preguiça de escrever, por isto adotou essa forma poética que possui apenas 17 sílabas, e foi dela o representante maior no Japão em todos os tempos.

Na verdade, o haikai é um desafio. Afrânio Peixoto introduziu o haikai no Brasil, porém o poeta Guilherme de Almeida foi quem ditou no país as regras rígidas para a prática dessa poesia. Segundo ele, um clássico haikai tem três versos. O primeiro e o último com cinco sílabas, e o do meio com sete. Além disto, o primeiro verso rima com o terceiro, e o segundo verso tem uma rima interna, linear, em que a segunda sílaba rima com a sétima. Exemplo:

Noite. Um silvo no ar. 
Ninguém na estação. E o trem
segue sem parar. 

Vários outros autores, que adotaram o haikai pelo mundo, impuseram outras regras sempre dentro desse universo de 17 sílabas. Millor Fernandes, entretanto, fez haikais sem obedecer qualquer regra, para arrepio dos puristas. Na verdade, foi ele quem popularizou o haikai no Brasil, ao publicar uma nova composição a cada semana em sua página “Pif-Paf”, da antiga revista “O Cruzeiro”, e em outras em que colaborou. Exemplo:

Meu dinheiro
Vem todo
Do meu tinteiro

Para ficar bem com todo mundo, ofereço-lhe um dos meus na medida certinha: 

Na Academia,
Se não mantenho atenção,
Vou todo dia
 

É bom lembrar que a última sílaba de cada verso, para efeito de  contagem, é sempre a sílaba tônica. Portanto, em portanto, por exemplo, a última sílaba é tan e não to. Em Arica é e não ca, e assim por diante.

Parabéns a você



Sabe qual a música mais cantada no Brasil? Se pensou em “Feliz Aniversário”, acertou. Se bem que deve ter vindo à sua mente não o nome, mas o apelido dessa melodia: “Parabéns a você”. 

Todos os dias aniversariam, em média, 2 milhões e 700 mil pessoas no pais. Para a grande maioria existe gente cantando “Parabéns a você, nesta data querida, muita felicidade, muitos anos de vida”. Sem falar em outras circunstâncias em que a quadrinha se encaixa. Os papas, quando vêm ao Brasil, sempre ouvem parabéns a você cantado em coro de milhares de fieis para homenageá-los e, nas várias vezes que isso aconteceu, nem era dia do aniversário de cada um. 

Há muito a melodia ultrapassou o limite das datas natalícias para se encaixar em outras confraternizações. Por isso, quase ninguém conhece a música pelo nome original de “Feliz aniversário”; todos dizem “vamos cantar Parabéns a você”, ou simplesmente “cantar parabéns”.

A canção original norte-americana “Good morning to all” (Bom dia a todos) que teve seu nome mudado ainda nos Estados Unidos da América para “Happy birthday to you” (Feliz aniversário para você) tem versos repetidos que se fossem traduzidos ao pé da letra nem se encaixaria corretamente na melodia. Imagine-se cantando: “Feliz aniversário pra você, feliz aniversário pra você, feliz aniversááááário (aqui se diz o nome do aniversariante), feliz aniversário pra você.” Não daria. Como, de fato, não deu.

Por isso, em 1942, um conhecido animador de programa de auditório cognominado Almirante, da Rádio Tupi do Rio de Janeiro, lançou um concurso em que os concorrentes deveriam compor uma letra em português para a melodia. Tinha de ser fácil de cantar e servir para homenagear qualquer pessoa. Participaram 5 mil concorrentes. 

Coube a um juri composto por três membros da Academia Brasileira de Letras, os poetas Cassiano Ricardo, de São José dos Campos (SP), Olegário Mariano, de Recife (PE) e o escritor Múcio Leão, também de Recife, escolher a melhor. Venceu a poeta Bertha Celeste Homem de Mello (Na foto, aos 96 anos), nascida em Pindamonhangaba, que se mudou para Jacareí aos 56 anos de idade, onde viveu os restantes 41 anos. Faleceu em 1999 aos 97 anos, logo depois de receber o título de “Cidadã Jacareiense” indicado pelo então vereador Marco Aurélio de Souza (PT). Veja que há três cidades da Região Metropolitana do Vale do Paraíba envolvidas na composição e consagração dessa peça popular: Pindamonhangaba e Jacareí, por Bertha, e São José dos Campos, por Cassiano.

“Parabéns a você” caiu rapidamente no gosto popular e derrubou algumas dezenas de canções de aniversário que já existiam na primeira metade do século passado, inclusive a popular e maldosamente parodiada “Fulano é bom companheiro...”. 

O grande feito da poeta Bertha Celeste Homem de Mello, este literogramatical, foi impor definitivamente o uso da palavra parabém no plural: “parabéns”. Ninguém hoje se arrisca a escrever, como o fez Machado de Assis em “Dom Casmurro”: “um parabém da flora universal”, referindo-se ao encontro dos personagens padre Cabral e Capitu.

A Academia Jacarehyense de Letras escolheu Bertha Celeste Homem de Mello como patronesse de uma de suas cadeiras, tornando-a um dos 30 de seus patronos imortais . Justa homenagem a quem usou a simplicidade, marca de sua vida pessoal , para criar o maior fenômeno do cancioneiro popular do Brasil.

quinta-feira, 12 de maio de 2016

Pedido de socorro

(Recomposição de texto anterior)

Haverá choro, ranger de dentes e sorrisos de felicidade - O reino das letras é como o presidente de uma academia literária que preparou uma palestra. Ele falaria, por exemplo, de Lygia Fagundes Telles (19-4-1923), escritora paulistana, em uma reunião da quinta-feira seguinte. Assim, mandou seus assistentes avisarem os demais acadêmicos para a apresentação, mas os convidados não quiseram ir. Com quórum minguado na data da prevista, suspendeu a palestra e mandou outros assistentes dizendo:

“Falem aos acadêmicos que venham na próxima quinta-feira, pois já decorei a fala, ensaiei os gestos, preparei projeção em data show, mandei deixar chávenas para o chá, biscoito Trakinas, e tudo está pronto.” Mas os acadêmicos ao serem contatados não deram a menor atenção; uns foram ao cinema, outros permaneceram a 30 quilômetros em outra cidade, alguns foram jogar truco, um grupo foi cuidar de seus negócios e outros ainda praguejaram contra os assessores e os mataram de vergonha.

Indignado, o presidente foi à porta da academia e gritou para a rua: “Não vai ter golpe”! Em seguida falou a seus assessores: “A palestra da Lygia está mais que pronta, mas os convidados não a mereceram. Portanto vão até as encruzilhadas do caminho e reúnam para o evento todos os que vocês encontrarem, interessados ou não.” Então os auxiliares saíram pelas ruas iluminadas ou escuras, calçadas revitalizadas, boas ou esburacadas e reuniram todos os que encontraram: alunos de escolas do ensino fundamental, escritores ainda desconhecidos, professores amigos de acadêmicos assíduos, e a sala da academia ficou cheia como ainda não havia acontecido este ano. O presidente ao ver a sala cheia disse feliz: “Agora vai ser assim. Quem não cumprir o estatuto ficará sentado à porta da academia no frio da noite impedido de entrar. Ali haverá choro e ranger de dentes”.

Entusiasmado, marcou outro encontro para a quinta-feira seguinte quando viria de quebra um editor famoso para dicas de como publicar um livro. O grupo que veio das ruas foi convidado a  participar novamente, agora sem necessidade sair a caçá-lo. 


Dessa vez, entretanto, só os acadêmicos vieram. O grupo que salvou a reunião na primeira vez evaporou-se. E o presidente ensinou que há pessoas que passam pela  nossa vida para resolver uma crise e, talvez, até para atender a um pedido de socorro. Depois, saem de cena. Só servem para aquele momento. Entender isso é ser feliz.

segunda-feira, 9 de maio de 2016


CARTAS PARA ROSA

Benedicto Sérgio Lencioni
3º Prêmio de Literatura (2015) - J.A.Cursino e Editores
São José dos  Campos SP 


domingo, 8 de maio de 2016

Marçon, velho de guerra


Marçon (esquerda) e outro ex-combatente,
em frente ao monumento 
aos pracinhas da FEB, |||
dia 30, no Forte Ipiranga, em Caçapava


José Antônio Marçon é o o único dos cerca de 150 moradores de Jacareí (SP) que lutaram na Segunda Guerra Mundial que permanece no município. Um mudou-se para São Paulo e os demais morreram. Ele completou 98 anos na terça-feira, 10 de maio. Pouco antes, em 30 de abril, o veterano participou das comemorações dos 71 anos do confronto com os alemães durante a investida vitoriosa dos pracinhas da FEB (Força Expedicionária Brasileira) na batalha de Fornovo di Taro, na Itália. Marçon estava lá como integrante da 9ª companhia de fuzileiros do 6º RI (Regimento de Infantaria) de Caçapava. Tinha 26 anos. Aos 18, ele havia sido sorteado para cumprir o serviço militar obrigatório, por um ano, no mesmo 6º RI - naquele tempo os jovens eram sorteados para servir.

Marçon trabalhava na roça, em Jacareí, quando foi surpreendido pela carta de convocação do Exército. Deveria apresentar-se para os treinamentos que fizeram dele soldado municiador apto a embarcar para a Itália, palco do conflito. O mundo ocidental, assim como nós o conhecemos, tem uma grande dívida de gratidão aos milhares de heróis que arriscaram suas vidas nessa guerra que durou de 1939 a 1945 para evitar o domínio alemão. Uma fração de crédito a essa bravura, por mérito, pertence a Marçon. Os círculos militares entendem assim. Tanto que ele e mais 11 estiveram no centro das homenagens aos combatentes de Fornovo, no Forte Ipiranga, em Caçapava, em 30 de abril, homenagens que se repetiram à tarde do mesmo dia em Quiririm, distrito de Taubaté, onde ele nasceu. Depois, novamente, à noite voltou ao forte, em Caçapava, onde aconteceu uma encenação da batalha.

Fram muitas emoções. Mas não maiores que a recepção inesquecível que ele e os demais tiveram ao retornar ao Brasil em 1945, recorda-se. “O medo e a presença constante do perigo estavam presentes o tempo todo nos campos de batalha”, conta o velho combatente. Os pracinhas não tinham a menor noção do que os esperava em cada ponto do território italiano, a cada missão. “Vimos coisas que jamais vamos nos esquecer”, diz. A maior participação foi num momento crítico em que muitos combatentes das tropas aliadas saíram das regiões de Monte Castelo, Castelnuovo, Monte Prano, Fornacci e Fornovo Di Taro para lutar na França invadida pelas tropas do eixo. Marçon ficou. Permaneceu nesses locais no efetivo então reduzido. Conta que muitas vezes sobreviveu a intensa artilharia inimiga que não dava trégua, pois era encarregado de reabastecer com munição as tropas e durante o combate sob fogo cruzado. 

Somente  quando os alemães se renderam foi que descontraíram. Era fevereiro de 1945. A vitória foi na batalha de Fornovo, que durou dois dias, depois da 4ª investida da artilharia brasileira contra o inimigo. Ao receber o ultimato para que se entregasse incondicionalmente, o  comando alemão disse que só se renderia aos soldados brasileiros. Um padre da região fizera os contatos para o cessar-fogo.

Marçon chegou em Jacareí aos 12 anos, levado pelo pai, Pedro Marçon, imigrante italiano de Veneza, e a mãe, Maria Trevisan, também italiana. Tinham imigrado para trabalhar na lavoura em campo que arrendaram. Porém, ao jovem Marçon havia sido reservada missão maior. Obrigado, soldado.
Marçon (terceiro perfilado da esquerda para direita)
em frente ao monumento à FEB no Forte Ipiranga, em Caçapava