segunda-feira, 29 de maio de 2017

Paz, amor e liberdade



O ano era 1969. Vivíamos o governo militar sob a presidência do general Artur da Costa e Silva que, no ano anterior, editara o AI5 (Ato Institucional nº 5) o mais duro do regime. O Congresso foi fechado, políticos e lideranças eram presos ou tinham mandatos cassados, ou ambas as coisas, por simples suspeita, e a repressão foi institucionalizada. A censura a produções artísticas tornara-se mais severa e implacável. Nesse clima cinzento foi montada no Brasil, por iniciativa de Ademar Guerra, a peça Hair: The American Tribal Love-Rock, escrita nos Estados Unidos por James Rado e Gerome Ragni, um rock-musical que fazia sucesso estrondoso na Broadway desde quando foi lançada, em abril de 1998, um ano antes. O mesmo fenômeno artístico acontecia com a apresentação da peça em vários países.
No citado ambiente repressivo do Brasil de então, onde nudez, liberdade sexual e liberdade de expressão eram temas perseguidos, uma peça que trouxesse nudez coletiva e pregasse liberdade sexual e de expressão, reunia tudo para não vingar. Ademar Guerra apostou no contrário: era preciso um grito de desabafo e de esperança. Não desistiu de montá-la e, depois de várias gestões junto às autoridades, conseguiu liberar o espetáculo; não sem evitar cortes no texto e vigilância à nudez coletiva. Dentre outras restrições, a cena de nudez teria de durar um minuto e os atores não poderiam mexer-se no palco durante esse tempo. 
Ficariam estáticos.


 Nei Latorraca em Hair (1969) no Teatro Bela Vista

Hair estreou no Brasil em 1969 no Teatro Bela Vista, em São Paulo, dirigido por Guerra. A peça, que já era o maior clássico do musical rock mundial, manteve o mesmo sucesso no Brasil durante a exibição concorrida de aproximadamente três anos. Os ideais transgressores do movimento hippie foram acentuados e Hair tornou-se divisor de águas entre o comportamento dos jovens de até então. Ainda se notam vestígios daquela época em certa camada jovem, frutos da revolução sexual, uso de drogas e certo engajamento político, social e inclusivo.

As manifestações contrárias à guerra do Vietnã, à destruição ambiental e ao preconceito entre raças, credos, classes e sexos “norteavam o que acontecia fora e dentro do palco”, diz Luiz Felipe Reis (O Globo: 3/11/2010). Focados em impedir nos teatros as quebras de costumes, como inibição da nudez, proibição do uso de drogas e discriminações sociais veladas, o governo repressor, apesar da truculência, não se dava conta da revolução que acontecia no mundo fora dos palcos onde a peça era apresentada. No Brasil, o sucesso da peça revelou atores como Antônio Fagundes, Sônia Braga, Nei Latorraca, Aracy Balabanian, Armando Bógus, José Wilker, Ivone Hoffman, Fernando Reski e Rosa Maria, todos em início de carreira.

 Cena estática de nu coletivo encerrava a peça



Para muitos (talvez a maioria), entretanto, a encenação falava de amor, e isso era o que valia; a beleza das músicas, a ousadia das interpretações a descontração das cenas bastavam para satisfazer como espetáculo. Hair transformou-se em filme (1979) e voltou aos ao Brasil em 2010, no Rio de Janeiro, sob outro contexto político nacional e sem o mesmo sucesso; faltava-lhe causa mais definida.    

Portanto, mais de 40 anos depois, em 5 de maio de 2010, Hair foi novamente encenada no Brasil, agora  no Teatro Casa Grande, no Rio de Janeiro, trazida pela dupla de produtores Claudio Botelho e Charles Möeller. Ambos haviam assistido ao revival da peça em 2009, em Nova Iorque, e voltaram de lá decididos a remontá-la também no Brasil. A estreia foi cercada de glamour com a presença dos atores de 1969, agora astros e estrelas consagrados pela televisão. A direção de Diane Paulus optou por selecionar um elenco de novatos que vivesse personagens antigos com perfis atualizados, que não atingiu o mesmo brilho daquela primeira turma de atores, mas deu conta do recado.  Embora se procurasse ambientar a peça em 1968, o cenário extra palco deste século era outro e, certamente, influenciou o resultado menor.


O Brasil de agora se fez mais arredio a sonhos utópicos, embora não seja menos frustrante para as inquietudes da mocidade. Um país mais avançado, se analisado pelos avanços tecnológicos predominantes no mundo, mostrado até pela sofisticada produção.

Porém, de certo modo, era quase o mesmo país – se não pior – quando examinado pela realidade social enfrentada pela juventude deste segundo decênio do século 21. Realidade que já começava a exigir os primeiros toques de alerta. Um Brasil bem diferente daquele dos “bichos” de cabelos compridos e das jovens ousadas que lançaram a minissaia e a calça jeans desbotada em l969.


               Montagem de 2010 com atores novos

Cena do filme Hair, de 1979


Esse diferencial 
entre montagens bem visível deve-se ao fato de que os jovens de 1969 em nada serem parecidos com os de agora, presos, estes, nas redes sociais e na comunicação eletrônica. Nossos contemporâneos nada têm a ver com aqueles, hoje senhores, sobreviventes dos “anos Hair I”. Para aqueles sonhadores da paz e do amor universais, em breve começaria a mística “Era de Aquário”, tão logo “a Lua estivesse na Sétima Casa e Júpiter alinhasse com Marte”, coisa que ninguém sabia determinar quando isso se daria, nem interessava. Para eles, o importante era que nesse momento atingiríamos a gloriosa plenitude de viver sem barreiras egoístas.           >>>




Cena do filme Hair, de 1979

Na apresentação de Hair no Teatro Casa Grande, do Rio de Janeiro, ouviu-se outra vez as músicas Aquarius, Hare Krishna, Good Morning Starshine, The Flesh Failures, Where do I Go? e outras nas quais se sustentou a peça. Porém, mesmo com arranjos mais elaborados e técnicas de apoio mais sofisticadas que as de antes, as de 2010 não reproduziram o mesmo som, não tiveram o mesmo sabor, nem tocaram os expectadores da mesma maneira. Faltava-lhes uma intensidade de alma, um sonho, uma centelha que identificasse uma causa.

A juventude dos anos 60 queria o fim das mortes estúpidas impostas aos jovens que partiam sem volta para guerras injustificadas, como a do Vietnã, tão ceifadoras de vidas ainda em formação.  Os jovens deste século continuam morrendo por velocidade nas estradas, overdose de drogas e por nada em esquina de uma rua de qualquer cidade.
Antes morriam nas batalhas por bombas padronizadas; hoje, apesar as armas seres ficado mais sofisticadas, morrem metralhados em salas de aula, por humanos que se explodem em saídas de shows infantis; por balas e expectativas perdidas no mesmo Rio que foi palco de Hair pela segunda vez no Brasil.
Haverá uma terceira montagem da peça Hair no Brasil? Difícil. Talvez por falta de perspectiva, de legados ou de sonhos. Afinal, a velha bomba atômica de 1945 ainda nos ameaça a todos q





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