quinta-feira, 18 de maio de 2017

O HOMEM QUE NÃO TINHA NADA - Projota


“O homem que não tinha nada acordou bem cedo
Com a luz do sol, já que não tem despertador.
Ele não tinha nada, então também não tinha medo
E foi pra luta como faz um bom trabalhador”

A curta filmagem de 3 e meio minutos de “O Homem que Não Tinha Nada”, do cantor Projota, é  uma representação básica dessa produção estética pós-modernista híbrida, pastiche, hiper-real, descentrada e fragmentada: o videoclipe.  A essa conclusão pode-se chegar com uma análise segundo os parâmetros que classificam essa ate, considerada forte candidata à "hegemonia cultural do capitalismo tardio", nas palavras de Frederic Jamenson (1991).


O enredo é um protesto contra a violência urbana que banalizou a vida nestes tempos incertos. A interpretação da melodia, sobre a qual foi montado o roteiro do videoclipe, é do próprio Projota com participação da cantora Negra Li para amenizar a carga psicológica pesada. Uma série de fatores positivos foi juntada na complementação desse trabalho que na época se transformou no maior sucesso do cantor. O sucesso foi rápido, tão logo veio a público o álbum “Ela Só Quer Paz”, em 2014, com 16 músicas, das quais “O Homem que Não Tinha Nada” é parte.

Trata-se, como se percebe numa primeira apreciação do trabalho, de uma narrativa aberta de montagem livre e sem formalidades, atributos que se revelam óbvios no gênero, porém, não fazem com que o todo caia no vulgar. Sabe manter-se linha definida por Andrew Goodwin, em que a ficção e a realidade se complementam, se negam e se interpretam.

Complementam-se nas cenas em que letra, imagens e música narram o dia a dia de Josué, um trabalhador comum de periferia, pai de três filhos sem nenhuma perspectiva de futuro, embora feliz a seu modo. Cenas de cortes rápidos ilustram o texto cantado enquanto, por seu lado, a carga emocional da letra, da música, da forte e cadenciada batida rítmica vai conduzindo ao limite máximo da tensão geral que se busca. Também reforçam esse caminho as alternâncias das tomadas em cores sujas intercaladas com as tomadas em preto e branco de maneira bem dosada na filmagem. A sequência é controlada pelas participações da cantora Negra Li que entra com o refrão nos momentos certos e caracteriza a proposta do trabalho: ser um protesto contra a injustiça social do nosso tempo:

        “O ser humano é falho, hoje mesmo eu falhei,
          Ninguém nasce sabendo (ninguém), então me deixe tentar”


O objetivo da sequência acima citada é atingir o clímax quando Josué sofre um atentado e morre.  Nota-se ainda, em várias cenas, a influência do cinema no trabalho analisado. Por exemplo, em uma encenação sobre um enredo principal ligada diretamente ao texto da música, embora em videoclipe isso não seja norma. Do mesmo modo, observa-se a linguagem cinematográfica quando acontecem os cortes sequenciais presos quase que fielmente à narrativa lamentosa do texto musicado; cinema puro, mas não necessariamente videoclipe.


O homem que não tinha nada, tinha Marizete
              Maria Flor, Marina, Mari, eu quero ser o menor
              Um tinha nove, uma doze, outra dezessete
              A de quarenta sempre foi o seu amor maior


Os demais elementos vão se apresentando de maneira que fica bem definida a característica videoclipe, embora muitas vezes obedeça ao direcionamento da letra, música e sequência dos cortes. Sai do comum graças às sequências em cores entremeadas por outras em preto e branco, pelas ilustrações que às vezes fogem da fidelidade aos versos, com as tomadas visuais e a alta velocidade das sequências filmadas, da sobreposição de cenas em vários trechos, material também característico do videoclipe. Mais uma vez, ficção e realidade se confundem para se completarem, como define Goodwin.

Finalizando, percebe-se, grosso modo, que o efeito geral obtido pelo trabalho foi muito favorecido pela competência do autor em escolher e utilizar os meios certos para a mensagem a que se propôs. Por exemplo, o gênero musical rap do qual ele é um dos maiores representantes no país. O rap não é o único, mas é o que ele domina e explora com maestria seus predicados de música forte, de cadência pesada como uma caminhada firme de protesto, gênero que permite o uso de uma letra longa e provocadora ao gosto da massa sofrida da população. Esses elementos realizaram com o videoclipe um casamento perfeito.




“O Homem que Não Tinha Nada” mostra-se ser um daqueles trabalhos criados no momento certo, por isto atinge diretamente os sentimentos de quem o aprecia: transforma-se em brado de revolta nos inconformados, em alento nos sensíveis e um grito de socorro compreensível por todos. Isto se vê bem se vê numa sequência de ilustrações de fundo quando Josué é vítima de um atentado. Há queima de pneus pelos mais exaltados, choro inconformado família, passividade de quem observa, impunidade a quem pratica e impotência dos vitimados, tudo mostrado em poucos segundos.

As cinco normas propostas de Ann Kaplan para análise do gênero, entretanto, não se completam no presente trabalho. Não há o niilismo nem o ultramoderno. Mas, lá estão o social consciente, o clássico e o romântico em quantidade, o que basta. Enfim, trata-se de um videoclipe; ora, normas!



O homem que não tinha nada, agora já não tinha vida
Deixou pra trás três filhos e sua mulher
O povo queimou pneu, fechou a avenida
E escreveu no asfalto "saudade do Josué"
Saudade, Josué!

 



Nenhum comentário: