Conto de BVeloso
Anacleto Lopes de Castro nunca havia
lido com a devida atenção a própria certidão de nascimento até a noite de 9 de
maio de 2017, uma terça-feira. O motivo do desarquivamento da “peça de museu”,
como ele a chamava, foi a tarefa proposta pelo professor Leo Mandi, da oficina
de Literatura e Sarau da Fundação Cultural de Jacarehy, da qual ele participava.
“O que pode haver de interessante numa
certidão de nascimento do século passado preenchida à mão?” – comentou Anacleto
em casa à noite para a mulher Anita, enquanto ela servia a janta. “Justamente o
fato de ser um documento do século passado e preenchido à mão”, responde a
mulher, enquanto colocava na mesa a tigela com caldo de quirerinha e calabresa,
bem apropriado para encarar o frio daquela noite de outono.
Anita, veterana professora do ensino
médio da rede pública, estava acostumada a lidar com resmungos de alunos que sofrem
de leseira mental quando se veem à frente de uma folha em branco de papel com
um tema para escrever. Em situação semelhante, a coisa não muda quando se trata
de marido. “Ao contrário, piora”, sentenciou ela quando percebeu que Anacleto procurava
era um jeito de empurrar o trabalho pra ela fazer. “Nem por decreto, Anacleto!”,
deixou claro Anita para frustrar de vez a tentativa de empurrar a redação para que ela produzisse, e concluiu: “já fiz muito em lhe dar uma pista; o resto é com
você”.
“Que pista você me deu?”, mulher – perguntou,
na intenção de agarrar-se a qualquer motivo que o livrasse da obrigação. “Certidões
são iguais; mudam os nomes, mas, viu uma viu todas!” – resmungou. Impaciente, ela
responde como quem ralha com um aluno rebelde: “a grafologia! O que mais
poderia ser? Analise a grafia de quem preencheu o documento à mão, por exemplo. Está
aí uma chance de você mostrar que ainda é bom nisso”, provocou Anita.
“De novo?! Provo-lhe tal coisa desde que
nos conhecemos”, disse Anacleto sem esconder o tom de malícia na voz. Ele desde
há muito era estudioso de grafologia, ciência que sempre levou a sério. De
fato, ambos haviam se conhecido, anos atrás, em uma análise que Anacleto fizera
de um formulário de proposta de emprego que Anita acabava de preencher à mão, numa
empresa. Ele foi o entrevistador. Pelas qualidades de Anita, “cientificamente
reveladas”, como ele explicara depois ao justificar o interesse não apenas de
aprová-la para o trabalho, mas de pedi-la em casamento meses depois. Daí o
motivo da provocação da mulher naquele momento. Anacleto, entretanto, gostou da
ideia de analisar a letra de quem preenchera sua certidão de nascimento e a levou consigo para a mesa. Enquanto tomava a sopa ele olha distraidamente o documento enquanto comenta:
“Era uma mulher, bonita, inteligente, irresistivelmente sedutora...”, diz.
Anita volta-se quase agressiva para dizer:
“Ei! Desde quando a letra de uma pessoa numa simples certidão revela tudo isso
com esses detalhes?” Anacleto responde sem levantar os olhos
do papel: “Estou falando de você”, naquela entrevista de emprego. “Ah!”, foi a
única coisa que Anita conseguiu dizer.
O marido continua: “Annn! Estava ansiosa, muito ansiosa...”,
afirmou. Anita reage de novo, agora desajeitada: “Nada! Eu estava bem preparada
para aquela entrevista”. Anacleto a corrige: “Agora, estou falando da mulher
que preencheu esta certidão; está claro que é mulher, ela assina em baixo, mas a ansiedade é confirmada pela sua letra inclinada para a esquerda, um tanto espremida em algumas
palavras e não em outras; significa que escrevinhação não é o normal de sua grafia,
venha aqui ver”, insistiu em tom conciliador.
Anita foi até ele para juntos examinarem
o documento. “Trata-se de uma substituta ou novata, Anita. Não há uniformidade
na escrita, própria dos mais experientes. Eu acho..."
Anacleto não conseguiu prosseguir.
Apesar dos anos, Anita continuava bonita e irresistível. Ela agora o enlaçava
por detrás da cadeira, de pé, braços apoiados nos ombros dele, e toma-lhe a
palavra:
“...não sei o que você acha, meu bem; de minha parte,
não preciso de uma certidão para provar que você existe. Basta senti-lo aqui junto
a mim”, diz carinhosa. “Tá bom, vou dizer isso ao professor Leo amanhã,
pra justificar por que não fiz a redação”, apressou-se Anacleto procurando
retomar o domínio da situação, e olhando para ela: “Suponho que eu vou ficar muito ocupado a partir de
agora”, insinuou.
“Nã-hã!” cortou logo Anita. “Primeiro a
certidão, depois a diversão!”, sentenciou. “Mas, e a certeza de que eu existo,
que você disse, não conta?!”, protestou Anacleto.
“Não para efeitos didáticos”, respondeu
Anita safando-se do Romeu para recolher a louça da mesa. E encerrou o assunto.
Mulheres são complicadas...
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