sábado, 9 de julho de 2016

A escritora Esther Rosado sem pé nem cabeça


Aprendi num livro que não existe estratégia específica para leitura de texto literário. Ler, vai do seu gosto, do meu gosto, de nossa estratégia pessoal. Então, convido você para uma experiência com um texto da escritora Esther Rosado, publicado recentemente no Semanário 1185, página 2. Essa brincadeira não é crítica; não nos preocupa como Esther escreveu, mas como nós dois entendemos o trabalho dela. Quando você não concordar com o que digo, pule o trecho ou opine no campo “comentários” deste blog.

O trabalho intitula-se “Da próxima vez, prometo melhorar”. Esther começa com um gesto básico de humildade para nos envolver com o sentimento que ela expressa no texto. Essa empatia escritor-leitor pesa muito em nosso julgamento. A estratégia é conquistar-nos o mais rápido para manter-nos ao lado dela. Por isso ela busca simpatia e nivelar o sentimento dela com o nosso desde o título. Mais adiante, uma inversão de frase – outra técnica que, bem executada, não falha: transforma uma frase comum em frase poética. Ao invés de “existem muitas histórias escondidas entre as páginas de um livro”, ela diz: “existem muitas histórias entre as páginas dos livros, escondidas”. Muda o tom. Essa vírgula colocada depois de “livros” é facultativa. Mas, colocada, provoca uma quebra oportuna no ritmo da leitura reforçando o jeito poético da frase.

Vou apresentar só mais dois casos. Chamo a atenção para as metáforas que ela esbanja no texto: “gosto de escrever na tela do meu notebook, tocar este piano de palavras no teclado”, ou então “sou, imagino, para escrever assim, nos de repentes, uma guardadora de lembranças, uma pastora de paisagens”.

O segundo destaque é outro afago no leitor. “Escrevo para pessoas, mas, juro, gostaria de escrever para a criança que há em você e em mim”. Depois de outras mágicas com palavras, que ela foi criando sem projeto, na medida em que lhe saíam da cabeça, ela termina amarrando o final do texto com o início, lá em cima, no mesmo tom: “E porque havia tanto trabalho, escrevi esta crônica sem pé nem cabeça” (mas, com alma e coração). “Da próxima vez prometo melhorar”.

Abaixo, o texto que gerou o comentário:

"Da próxima vez prometo melhorar"
(Esther Rosado, psicanalista, professora de literatura e redação)

Há tanto trabalho sobre a mesa que recuo: tão difícil escrever e ver a poesia que há no mundo.
Sobretudo nos dias nublados como esses, quem disse que o trabalho rende?
Então, faço arrumações de gavetas, penduro roupas nos armários e o mundo gira suas voltas de alegrias, tristezas e grandes gargalhadas.
Sou, imagino, para escrever assim, nos de repentes, uma guardadora de lembranças, uma pastora  de paisagens, uma colecionadora de assuntos e temas improváveis guardados todos nas gavetas da memória.
Há trabalho atrasado sobre a mesa, mas gosto de escrever no branco da tela do meu notebook, tocar este piano de palavras no teclado.
Então, apesar da surpresa – ai que susto, tenho que mandar a crônica hoje – escrevo como quem borda, escrevo como quem ama, escrevo como que chora, escrevo para pessoas. Mas, juro, gostaria de escrever para a criança que  mora em você e em mim.
Começar assim: era uma vez...
Continuar assim: uma princesa e seu castelo de jardins maravilhosos…
Tanto trabalho sobre a mesa, empilho os livros, preciso escrever uma apresentação de um livro, uma orelha, fazer correção, escrever uma tese, descobrir o mundo.
E o mundo gira sua canção de caixa de música.
À minha frente, uma pequena folha se agita ao vento, um jardim e seu perfume, uma libélula e sua asa, um besouro e seu voo, um pássaro e seu canto.
Então, sei que ainda existem muitas histórias entre as páginas dos livros, escondidas; são versos ainda sem rima, são capítulos sem título, são formigas que ainda não nasceram para passear nos troncos e sobre as folhas verdes.
Tanto trabalho sobre a mesa e tudo se misturou nesta não-crônica.
Ouço a canção do vento, do friozinho, das árvores lá de fora.
Ouço a canção do mundo.
De um lado, uma canção de ninar; do outro, tristes e tantos acontecimentos. Mas tudo é assim: um lado e outro.

E porque havia tanto trabalho, escrevi esta crônica sem é e sem cabeça. Da próxima vez, prometo melhorar.

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