O
cotidiano do promotor substituto é não conviver com a rotina. A cada mês, ele é
designado para uma comarca diferente, onde houver cargo vago. Cada local tem
sua peculiaridade, até mesmo os processos judiciais são diferentes e as discrepâncias
aumentam à medida que a cidade é mais afastada da Capital.
Em Itapeva, São Paulo quase divisa com o Paraná, juízes e promotores almoçavam no fórum mesmo,
cotizando-se para comprar os ingredientes e pagar uma excelente cozinheira. À
noite, era mais difícil - só havia um lugar bom para jantar fora e a
alternativa era encomendar pizza para entrega no hotel.
O local era
tão frio no inverno, que de manhã era preciso cutucar a crosta de gelo para
conseguir abrir a janela do quarto. A comarca era muito grande, a maior do
Estado de São Paulo, englobando cinco municípios. Não havia nenhuma cidade
grande nos próximos cem quilômetros e a paisagem rural era basicamente
constituída de extração de madeira, formando pilhas com quilômetros de
extensão, uma visão bonita de tão diferente.
A academia
de ginástica também não tinha concorrência. Era sozinha no ramo e também a
única da cidade com revistas de nudez masculina disponíveis para quem estivesse
nas bicicletas ergométricas, a demonstrar sua natural propensão a atender
melhor as atletas do sexo frágil e homossexuais, uma modernidade inimaginável
para uma cidade de interior, há quase duas décadas.
Nos momentos de distância da família e excesso de
serviço, o consolo do promotor substituto é pensar que nunca conheceria
paragens tão pitorescas em outras ocasiões, pois o turismo é muito mais voltado
para roteiros consagrados, como Balneário Camboriú e Paris.
Se Itapeva era um lugar, digamos, diferente, o que
dizer de Iguape, simpática cidadezinha histórica esquecida no meio da selva
tropical? Lá quase não passa carro, a bicicleta é o veículo de transporte
utilizado pela maioria da população, pelas ruas sem sentido obrigatório de
direção.
O juiz vivia há anos por ali e dizia que o
paulistano vira caipira de vez quando começa a andar pelo meio da rua, em vez
de ir pela calçada. Era o caso dele, em seu terno marrom fora de moda
(bigodinho também) e com guarda-chuva e Bíblia à mão.
O maior
problema para o substituto é chegar despreparado às vésperas de sessão do
tribunal do júri. O negócio é correr atrás das cópias e estudar no hotel todas
as noites antes de dormir, para compensar o tempo perdido em relação ao
advogado de defesa.
O júri é
ainda mais complicado quando é estreia para promotor tímido. E pode virar um
pesadelo quando o juiz vai ao gabinete do ministério público no fim do primeiro
dia e avisa que lá a sessão é transmitida ao vivo pelo rádio, coisas que só
acontecem em Iguape. Enquanto os debates seguem acalorados, nos botecos
esquentam as bolsas de aposta, pois tem hora que só apostar em número enjoa.
O promotor
nem se levantou para fazer a sustentação, com vergonha do plenário lotado. Para
entrar ou sair, só com senha e aguardando fila. A sorte dele é que o réu já
estava condenado por antecipação, já que o caso era muito rumoroso e causou
revolta na pacata cidade, à época do crime. Era só falar bom dia e os jurados
já teriam condenado o criminoso. Por via das dúvidas, só pra garantir, o juiz
deixou de lado a imparcialidade - interrogou o réu de costas para o advogado.
Cada vez que o suspeito entrava em contradição, o magistrado levantava as
sobrancelhas para os sete jurados terem certeza de que o assassino estava
mentindo. Juntando a isso a inépcia do advogado de defesa, escolhido a dedo
pelo juiz zeloso quanto à segurança pública da urbe, não deu outra – a
condenação saiu por unanimidade.
No entanto,
o promotor substituto não tinha onde, companhia e nem tempo para comemorar. Na
semana seguinte, outro júri estava marcado e daquela vez seria mais difícil,
pelas circunstâncias. Pelo menos, já haviam passado o nervosismo e a
expectativa da estreia. Debates realizados e findos os trabalhos em plenário, o
juiz se recolheu ao seu gabinete para bater os quesitos à máquina (ele era
definitivamente das antigas). Enquanto isso, o público se dispersou para tomar
água e esticar as pernas. Nesse ínterim, a rádio passava os comerciais mais
caros da semana (dado o ibope que batia recordes a cada julgamento) e os
jurados foram recolhidos incomunicáveis à sala secreta. Demonstrando patente
profissionalismo, defensor e promotor conheciam-se melhor e conversavam
amenidades no corredor, aguardando a hora da votação. Nisso chega um senhor
baixinho, que pede licença para cumprimentar os tribunos e faz um relato
desconcertante:
Os
senhores me desculpem a simplicidade. Sou um homem humilde, crescido no sertão
de Alagoas. Gosto de júri desde criança. Cada palavra linda. Nem todas
compreendo. Mas é tão bonito ver o ritual do julgamento, as roupas pretas, a
formalidade do juiz. E é cada discurso supimpa do promotor e do advogado. A
gente aprende muito. Eu tinha seis anos e o júri ia de cidade em cidade lá onde
eu morava. Eu montava no jumento e ia atrás do júri. Chegava em casa e apanhava
de mamãe, que me mandava trabalhar. Sou açougueiro, só que nunca perdi um
julgamento. Fecho o açougue mais cedo quando tem sessão e vou. Aliás, parabéns
ao doutor promotor no júri passado, foi muito bem. Foi tão emocionante, que a
vontade de urinar apertava, mas eu não queria perder um lance. Cheguei cedo
para pegar lugar na primeira fila. Sabia que seu eu saísse perdia o assento e
daí só pelo rádio, que não tem a mesma graça. Então, não tive dúvida. Fiz xixi
na calça mesmo, Deus me perdoe!
(*) José Luiz Bednarski é promotor de Justiça e da Cidadania em Jacareí (SP) e membro da Academia Jacarehyense de Letras
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