terça-feira, 7 de junho de 2016

Um aperto no Tribunal do Juri

José Luiz Bednarski (*)


         O cotidiano do promotor substituto é não conviver com a rotina. A cada mês, ele é designado para uma comarca diferente, onde houver cargo vago. Cada local tem sua peculiaridade, até mesmo os processos judiciais são diferentes e as discrepâncias aumentam à medida que a cidade é mais afastada da Capital.

          Em Itapeva, São Paulo quase divisa com o Paraná, juízes e promotores almoçavam no fórum mesmo, cotizando-se para comprar os ingredientes e pagar uma excelente cozinheira. À noite, era mais difícil - só havia um lugar bom para jantar fora e a alternativa era encomendar pizza para entrega no hotel.
          O local era tão frio no inverno, que de manhã era preciso cutucar a crosta de gelo para conseguir abrir a janela do quarto. A comarca era muito grande, a maior do Estado de São Paulo, englobando cinco municípios. Não havia nenhuma cidade grande nos próximos cem quilômetros e a paisagem rural era basicamente constituída de extração de madeira, formando pilhas com quilômetros de extensão, uma visão bonita de tão diferente.
          A academia de ginástica também não tinha concorrência. Era sozinha no ramo e também a única da cidade com revistas de nudez masculina disponíveis para quem estivesse nas bicicletas ergométricas, a demonstrar sua natural propensão a atender melhor as atletas do sexo frágil e homossexuais, uma modernidade inimaginável para uma cidade de interior, há quase duas décadas.
Nos momentos de distância da família e excesso de serviço, o consolo do promotor substituto é pensar que nunca conheceria paragens tão pitorescas em outras ocasiões, pois o turismo é muito mais voltado para roteiros consagrados, como Balneário Camboriú e Paris.
Se Itapeva era um lugar, digamos, diferente, o que dizer de Iguape, simpática cidadezinha histórica esquecida no meio da selva tropical? Lá quase não passa carro, a bicicleta é o veículo de transporte utilizado pela maioria da população, pelas ruas sem sentido obrigatório de direção.
O juiz vivia há anos por ali e dizia que o paulistano vira caipira de vez quando começa a andar pelo meio da rua, em vez de ir pela calçada. Era o caso dele, em seu terno marrom fora de moda (bigodinho também) e com guarda-chuva e Bíblia à mão.
          O maior problema para o substituto é chegar despreparado às vésperas de sessão do tribunal do júri. O negócio é correr atrás das cópias e estudar no hotel todas as noites antes de dormir, para compensar o tempo perdido em relação ao advogado de defesa.
          O júri é ainda mais complicado quando é estreia para promotor tímido. E pode virar um pesadelo quando o juiz vai ao gabinete do ministério público no fim do primeiro dia e avisa que lá a sessão é transmitida ao vivo pelo rádio, coisas que só acontecem em Iguape. Enquanto os debates seguem acalorados, nos botecos esquentam as bolsas de aposta, pois tem hora que só apostar em número enjoa.
          O promotor nem se levantou para fazer a sustentação, com vergonha do plenário lotado. Para entrar ou sair, só com senha e aguardando fila. A sorte dele é que o réu já estava condenado por antecipação, já que o caso era muito rumoroso e causou revolta na pacata cidade, à época do crime. Era só falar bom dia e os jurados já teriam condenado o criminoso. Por via das dúvidas, só pra garantir, o juiz deixou de lado a imparcialidade - interrogou o réu de costas para o advogado. Cada vez que o suspeito entrava em contradição, o magistrado levantava as sobrancelhas para os sete jurados terem certeza de que o assassino estava mentindo. Juntando a isso a inépcia do advogado de defesa, escolhido a dedo pelo juiz zeloso quanto à segurança pública da urbe, não deu outra – a condenação saiu por unanimidade.
          No entanto, o promotor substituto não tinha onde, companhia e nem tempo para comemorar. Na semana seguinte, outro júri estava marcado e daquela vez seria mais difícil, pelas circunstâncias. Pelo menos, já haviam passado o nervosismo e a expectativa da estreia. Debates realizados e findos os trabalhos em plenário, o juiz se recolheu ao seu gabinete para bater os quesitos à máquina (ele era definitivamente das antigas). Enquanto isso, o público se dispersou para tomar água e esticar as pernas. Nesse ínterim, a rádio passava os comerciais mais caros da semana (dado o ibope que batia recordes a cada julgamento) e os jurados foram recolhidos incomunicáveis à sala secreta. Demonstrando patente profissionalismo, defensor e promotor conheciam-se melhor e conversavam amenidades no corredor, aguardando a hora da votação. Nisso chega um senhor baixinho, que pede licença para cumprimentar os tribunos e faz um relato desconcertante:
          Os senhores me desculpem a simplicidade. Sou um homem humilde, crescido no sertão de Alagoas. Gosto de júri desde criança. Cada palavra linda. Nem todas compreendo. Mas é tão bonito ver o ritual do julgamento, as roupas pretas, a formalidade do juiz. E é cada discurso supimpa do promotor e do advogado. A gente aprende muito. Eu tinha seis anos e o júri ia de cidade em cidade lá onde eu morava. Eu montava no jumento e ia atrás do júri. Chegava em casa e apanhava de mamãe, que me mandava trabalhar. Sou açougueiro, só que nunca perdi um julgamento. Fecho o açougue mais cedo quando tem sessão e vou. Aliás, parabéns ao doutor promotor no júri passado, foi muito bem. Foi tão emocionante, que a vontade de urinar apertava, mas eu não queria perder um lance. Cheguei cedo para pegar lugar na primeira fila. Sabia que seu eu saísse perdia o assento e daí só pelo rádio, que não tem a mesma graça. Então, não tive dúvida. Fiz xixi na calça mesmo, Deus me perdoe!

(*) José Luiz Bednarski é promotor de Justiça e da Cidadania em Jacareí (SP) e membro da Academia  Jacarehyense de Letras

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