O ano era 1969. Vivíamos o governo militar sob a presidência do general Artur da Costa e Silva que, no ano anterior, editara o AI5 (Ato Institucional nº 5) o mais duro do regime. O Congresso foi fechado, políticos e lideranças eram presos ou tinham mandatos cassados, ou ambas as coisas, por simples suspeita, e a repressão foi institucionalizada. A censura a produções artísticas tornara-se mais severa e implacável. Nesse clima cinzento foi montada no Brasil, por iniciativa de Ademar Guerra, a peça Hair: The American Tribal Love-Rock, escrita nos Estados Unidos por James Rado e Gerome Ragni, um rock-musical que fazia sucesso estrondoso na Broadway desde quando foi lançada, em abril de 1998, um ano antes. O mesmo fenômeno artístico acontecia com a apresentação da peça em vários países. |
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No
citado ambiente repressivo do Brasil de então, onde nudez, liberdade sexual e
liberdade de expressão eram temas perseguidos, uma peça que trouxesse nudez
coletiva e pregasse liberdade sexual e de expressão, reunia tudo para não
vingar. Ademar Guerra apostou no contrário: era preciso um grito de desabafo
e de esperança. Não desistiu de montá-la e, depois de várias gestões junto às
autoridades, conseguiu liberar o espetáculo; não sem evitar cortes no texto e
vigilância à nudez coletiva. Dentre outras restrições, a cena de nudez teria
de durar um minuto e os atores não poderiam mexer-se no palco durante esse
tempo.
Ficariam estáticos.
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Hair estreou no Brasil em 1969 no Teatro Bela Vista, em São Paulo, dirigido por Guerra. A peça, que já era o maior clássico do musical rock mundial, manteve o mesmo sucesso no Brasil durante a exibição concorrida de aproximadamente três anos. Os ideais transgressores do movimento hippie foram acentuados e Hair tornou-se divisor de águas entre o comportamento dos jovens de até então. Ainda se notam vestígios daquela época em certa camada jovem, frutos da revolução sexual, uso de drogas e certo engajamento político, social e inclusivo. As manifestações contrárias à guerra do Vietnã, à destruição ambiental e ao preconceito entre raças, credos, classes e sexos “norteavam o que acontecia fora e dentro do palco”, diz Luiz Felipe Reis (O Globo: 3/11/2010). Focados em impedir nos teatros as quebras de costumes, como inibição da nudez, proibição do uso de drogas e discriminações sociais veladas, o governo repressor, apesar da truculência, não se dava conta da revolução que acontecia no mundo fora dos palcos onde a peça era apresentada. No Brasil, o sucesso da peça revelou atores como Antônio Fagundes, Sônia Braga, Nei Latorraca, Aracy Balabanian, Armando Bógus, José Wilker, Ivone Hoffman, Fernando Reski e Rosa Maria, todos em início de carreira. |
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Para muitos (talvez a maioria), entretanto, a encenação falava de amor, e isso era o que valia; a beleza das músicas, a ousadia das interpretações a descontração das cenas bastavam para satisfazer como espetáculo. Hair transformou-se em filme (1979) e voltou aos ao Brasil em 2010, no Rio de Janeiro, sob outro contexto político nacional e sem o mesmo sucesso; faltava-lhe causa mais definida. |
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Portanto, mais de 40 anos depois, em 5 de maio de 2010, Hair foi novamente encenada no Brasil, agora no Teatro Casa Grande, no Rio de Janeiro, trazida pela dupla de produtores Claudio Botelho e Charles Möeller. Ambos haviam assistido ao revival da peça em 2009, em Nova Iorque, e voltaram de lá decididos a remontá-la também no Brasil. A estreia foi cercada de glamour com a presença dos atores de 1969, agora astros e estrelas consagrados pela televisão. A direção de Diane Paulus optou por selecionar um elenco de novatos que vivesse personagens antigos com perfis atualizados, que não atingiu o mesmo brilho daquela primeira turma de atores, mas deu conta do recado. Embora se procurasse ambientar a peça em 1968, o cenário extra palco deste século era outro e, certamente, influenciou o resultado menor. |
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O Brasil de agora se fez mais arredio a sonhos utópicos, embora não seja menos frustrante para as inquietudes da mocidade. Um país mais avançado, se analisado pelos avanços tecnológicos predominantes no mundo, mostrado até pela sofisticada produção. Porém, de certo modo, era quase o mesmo país – se não pior – quando examinado pela realidade social enfrentada pela juventude deste segundo decênio do século 21. Realidade que já começava a exigir os primeiros toques de alerta. Um Brasil bem diferente daquele dos “bichos” de cabelos compridos e das jovens ousadas que lançaram a minissaia e a calça jeans desbotada em l969. |
Montagem de 2010 com atores
novos
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Cena
do filme Hair, de 1979
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Esse diferencial entre montagens bem visível deve-se ao fato de que os jovens de 1969 em nada serem parecidos com os de agora, presos, estes, nas redes sociais e na comunicação eletrônica. Nossos contemporâneos nada têm a ver com aqueles, hoje senhores, sobreviventes dos “anos Hair I”. Para aqueles sonhadores da paz e do amor universais, em breve começaria a mística “Era de Aquário”, tão logo “a Lua estivesse na Sétima Casa e Júpiter alinhasse com Marte”, coisa que ninguém sabia determinar quando isso se daria, nem interessava. Para eles, o importante era que nesse momento atingiríamos a gloriosa plenitude de viver sem barreiras egoístas. >>> |
Cena
do filme Hair, de 1979
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Na apresentação de Hair no Teatro Casa Grande, do Rio de Janeiro, ouviu-se outra vez as músicas Aquarius, Hare Krishna, Good Morning Starshine, The Flesh Failures, Where do I Go? e outras nas quais se sustentou a peça. Porém, mesmo com arranjos mais elaborados e técnicas de apoio mais sofisticadas que as de antes, as de 2010 não reproduziram o mesmo som, não tiveram o mesmo sabor, nem tocaram os expectadores da mesma maneira. Faltava-lhes uma intensidade de alma, um sonho, uma centelha que identificasse uma causa. |
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A
juventude dos anos 60 queria o fim das mortes estúpidas impostas aos jovens
que partiam sem volta para guerras injustificadas, como a do Vietnã, tão
ceifadoras de vidas ainda em formação.
Os jovens deste século continuam morrendo por velocidade nas estradas,
overdose de drogas e por nada em esquina de uma rua de qualquer cidade.
Antes
morriam nas batalhas por bombas padronizadas; hoje, apesar as armas seres
ficado mais sofisticadas, morrem metralhados em salas de aula, por humanos que
se explodem em saídas de shows infantis; por balas e expectativas perdidas no
mesmo Rio que foi palco de Hair pela segunda vez no Brasil.
Haverá
uma terceira montagem da peça Hair no Brasil? Difícil. Talvez por falta de
perspectiva, de legados ou de sonhos. Afinal, a velha bomba atômica de 1945
ainda nos ameaça a todos q
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segunda-feira, 29 de maio de 2017
Paz, amor e liberdade
quinta-feira, 18 de maio de 2017
O HOMEM QUE NÃO TINHA NADA - Projota
“O homem que não tinha nada acordou bem cedo
Com a luz do sol, já que não tem despertador.
Ele não tinha nada, então também não tinha medo
E foi pra luta como faz um bom trabalhador”
Ele não tinha nada, então também não tinha medo
E foi pra luta como faz um bom trabalhador”
Trata-se, como se percebe numa
primeira apreciação do trabalho, de uma narrativa aberta de montagem
livre e sem formalidades, atributos que se revelam óbvios no gênero, porém, não
fazem com que o todo caia no vulgar. Sabe manter-se linha definida por Andrew Goodwin, em que a ficção e a realidade se complementam, se negam e
se interpretam.
Complementam-se nas cenas em que
letra, imagens e música narram o dia a dia de Josué, um trabalhador comum de
periferia, pai de três filhos sem nenhuma perspectiva de futuro, embora feliz a
seu modo. Cenas de cortes rápidos ilustram o texto cantado enquanto, por seu
lado, a carga emocional da letra, da música, da forte e cadenciada batida
rítmica vai conduzindo ao limite máximo da tensão geral que se busca. Também
reforçam esse caminho as alternâncias das tomadas em cores sujas intercaladas
com as tomadas em preto e branco de maneira bem dosada na filmagem. A sequência é
controlada pelas participações da cantora Negra Li que entra com o refrão nos
momentos certos e caracteriza a proposta do trabalho: ser um protesto contra
a injustiça social do nosso tempo:
“O ser humano é falho, hoje mesmo eu
falhei,
Ninguém nasce sabendo (ninguém), então me deixe tentar”
Ninguém nasce sabendo (ninguém), então me deixe tentar”
O homem que não tinha
nada, tinha Marizete
Maria Flor, Marina, Mari, eu quero ser o menor
Um tinha nove, uma doze, outra dezessete
A de quarenta sempre foi o seu amor maior
Maria Flor, Marina, Mari, eu quero ser o menor
Um tinha nove, uma doze, outra dezessete
A de quarenta sempre foi o seu amor maior
Os demais elementos vão se apresentando
de maneira que fica bem definida a característica videoclipe, embora muitas vezes obedeça ao direcionamento da letra, música e sequência dos cortes.
Sai do comum graças às sequências em cores entremeadas por outras em preto e branco, pelas
ilustrações que às vezes fogem da fidelidade aos versos, com as tomadas visuais
e a alta velocidade das sequências filmadas, da sobreposição de cenas em vários
trechos, material também característico do videoclipe. Mais uma vez, ficção e
realidade se confundem para se completarem, como define Goodwin.
“O Homem que Não Tinha Nada” mostra-se ser um daqueles trabalhos
criados no momento certo, por isto atinge diretamente os sentimentos de quem o
aprecia: transforma-se em brado de revolta nos inconformados, em alento nos
sensíveis e um grito de socorro compreensível por todos. Isto se vê bem se vê
numa sequência de ilustrações de fundo quando Josué é vítima de um atentado. Há
queima de pneus pelos mais exaltados, choro inconformado família, passividade
de quem observa, impunidade a quem pratica e impotência dos vitimados, tudo
mostrado em poucos segundos.
O homem que não tinha
nada, agora já não tinha vida
Deixou pra trás três filhos e sua mulher
O povo queimou pneu, fechou a avenida
E escreveu no asfalto "saudade do Josué"
Deixou pra trás três filhos e sua mulher
O povo queimou pneu, fechou a avenida
E escreveu no asfalto "saudade do Josué"
Saudade, Josué!
domingo, 14 de maio de 2017
“O futuro sempre está semprecomeçando agora”
Beatriz: enredo surpreendente
A última vez que me recordo ter sentido forte impacto provocado
por um texto de ficção faz mais de dois anos. Foi ao ler pelo celular as
primeiras páginas de certo livro eletrônico. Eu me dirigia de ônibus a São José
dos Campos e, a fim de matar o tempo, rolava textos e imagens pela tela do
aparelho. A certa altura surgem umas páginas iniciais de um livro, desses cujos
trechos são exibidos como amostra; nem me lembro do nome. Fui atraído pelo
enredo e traído por minha defesa antimarketing
eletrônico e passei a ler.
Era na Idade Média. O personagem narrador, um jovem soldado,
aguardava morte certa, postado em um ponto estratégico da cidadela que lhe
cabia defender. O inimigo, que invadiria o local a qualquer momento, era
numericamente maior e já tinha dizimado quase todo o exército aliado em
seguidos confrontos. Restava somente aquele frágil e esgotado contingente de
homens ali abandonados. Morreria lutando, sem alternativa.
A diferença do livro era a narrativa ser feita do ponto de
vista de um simples soldado, o que foge ao comum dos textos do gênero.
Normalmente, tais histórias são contadas a partir de um comandante, de uma
pessoa de destaque no cenário descrito ou de um narrador onipresente e neutro. Nessa
obra, não. O narrador era um raso militar abnegado e solitário a passar pela
experiência de uma fatalidade prevista. O soldado revelava suas fraquezas
disfarçadas ou sufocadas por duras crises de consciência que lhe cobravam uma inumana
valentia imposta pelo “dever”. Muito bem narrada, a construção literária fazia,
de imediato, o leitor incorporar-se no personagem angustiado e sofrer com ele. Numa
leitura, quando isto acontece, o leitor está fisgado para ler o livro todo.

O personagem narrador, Marco, é um menino de quatro anos, extremamente
apegado à irmãzinha Maria, dois anos mais nova. Ambos moram só com a mãe. Certo
dia, sem qualquer motivo aparente para ele, ambos são levados por ela para um “passeio
surpresa” e abandonados em um orfanato. Nunca mais viram a mãe nem souberam
dela.

Apesar de tudo, Marco é um garoto cheio de sonhos e
esperanças. Essa ideia de ver o mundo através do inusitado pega o leitor e o
faz encarnar o personagem principal e vivenciar a história, como se o fato
acontecesse consigo. Beatriz Barreto, hoje com 13 anos, escreveu o livro aos 12
e nele deixa a mensagem que nunca desistamos de nossos sonhos: “O futuro sempre
está começando agora”, diz.
quarta-feira, 10 de maio de 2017
Prova de nascimento
Conto de BVeloso
Anacleto Lopes de Castro nunca havia
lido com a devida atenção a própria certidão de nascimento até a noite de 9 de
maio de 2017, uma terça-feira. O motivo do desarquivamento da “peça de museu”,
como ele a chamava, foi a tarefa proposta pelo professor Leo Mandi, da oficina
de Literatura e Sarau da Fundação Cultural de Jacarehy, da qual ele participava.
“O que pode haver de interessante numa
certidão de nascimento do século passado preenchida à mão?” – comentou Anacleto
em casa à noite para a mulher Anita, enquanto ela servia a janta. “Justamente o
fato de ser um documento do século passado e preenchido à mão”, responde a
mulher, enquanto colocava na mesa a tigela com caldo de quirerinha e calabresa,
bem apropriado para encarar o frio daquela noite de outono.
Anita, veterana professora do ensino
médio da rede pública, estava acostumada a lidar com resmungos de alunos que sofrem
de leseira mental quando se veem à frente de uma folha em branco de papel com
um tema para escrever. Em situação semelhante, a coisa não muda quando se trata
de marido. “Ao contrário, piora”, sentenciou ela quando percebeu que Anacleto procurava
era um jeito de empurrar o trabalho pra ela fazer. “Nem por decreto, Anacleto!”,
deixou claro Anita para frustrar de vez a tentativa de empurrar a redação para que ela produzisse, e concluiu: “já fiz muito em lhe dar uma pista; o resto é com
você”.
“Que pista você me deu?”, mulher – perguntou,
na intenção de agarrar-se a qualquer motivo que o livrasse da obrigação. “Certidões
são iguais; mudam os nomes, mas, viu uma viu todas!” – resmungou. Impaciente, ela
responde como quem ralha com um aluno rebelde: “a grafologia! O que mais
poderia ser? Analise a grafia de quem preencheu o documento à mão, por exemplo. Está
aí uma chance de você mostrar que ainda é bom nisso”, provocou Anita.
“De novo?! Provo-lhe tal coisa desde que
nos conhecemos”, disse Anacleto sem esconder o tom de malícia na voz. Ele desde
há muito era estudioso de grafologia, ciência que sempre levou a sério. De
fato, ambos haviam se conhecido, anos atrás, em uma análise que Anacleto fizera
de um formulário de proposta de emprego que Anita acabava de preencher à mão, numa
empresa. Ele foi o entrevistador. Pelas qualidades de Anita, “cientificamente
reveladas”, como ele explicara depois ao justificar o interesse não apenas de
aprová-la para o trabalho, mas de pedi-la em casamento meses depois. Daí o
motivo da provocação da mulher naquele momento. Anacleto, entretanto, gostou da
ideia de analisar a letra de quem preenchera sua certidão de nascimento e a levou consigo para a mesa. Enquanto tomava a sopa ele olha distraidamente o documento enquanto comenta:
“Era uma mulher, bonita, inteligente, irresistivelmente sedutora...”, diz.
Anita volta-se quase agressiva para dizer:
“Ei! Desde quando a letra de uma pessoa numa simples certidão revela tudo isso
com esses detalhes?” Anacleto responde sem levantar os olhos
do papel: “Estou falando de você”, naquela entrevista de emprego. “Ah!”, foi a
única coisa que Anita conseguiu dizer.
O marido continua: “Annn! Estava ansiosa, muito ansiosa...”,
afirmou. Anita reage de novo, agora desajeitada: “Nada! Eu estava bem preparada
para aquela entrevista”. Anacleto a corrige: “Agora, estou falando da mulher
que preencheu esta certidão; está claro que é mulher, ela assina em baixo, mas a ansiedade é confirmada pela sua letra inclinada para a esquerda, um tanto espremida em algumas
palavras e não em outras; significa que escrevinhação não é o normal de sua grafia,
venha aqui ver”, insistiu em tom conciliador.
Anita foi até ele para juntos examinarem
o documento. “Trata-se de uma substituta ou novata, Anita. Não há uniformidade
na escrita, própria dos mais experientes. Eu acho..."
Anacleto não conseguiu prosseguir.
Apesar dos anos, Anita continuava bonita e irresistível. Ela agora o enlaçava
por detrás da cadeira, de pé, braços apoiados nos ombros dele, e toma-lhe a
palavra:
“...não sei o que você acha, meu bem; de minha parte,
não preciso de uma certidão para provar que você existe. Basta senti-lo aqui junto
a mim”, diz carinhosa. “Tá bom, vou dizer isso ao professor Leo amanhã,
pra justificar por que não fiz a redação”, apressou-se Anacleto procurando
retomar o domínio da situação, e olhando para ela: “Suponho que eu vou ficar muito ocupado a partir de
agora”, insinuou.
“Nã-hã!” cortou logo Anita. “Primeiro a
certidão, depois a diversão!”, sentenciou. “Mas, e a certeza de que eu existo,
que você disse, não conta?!”, protestou Anacleto.
“Não para efeitos didáticos”, respondeu
Anita safando-se do Romeu para recolher a louça da mesa. E encerrou o assunto.
Mulheres são complicadas...
quarta-feira, 3 de maio de 2017
A poesia do Pátio dos Trilhos
Minha volta no tempo aconteceu no início
da noite de uma quarta-feira de maio de 2017. Eu participava de uma oficina de
literatura ministrada na velha estação ferroviária de Jacareí (SP) quando o
instrutor lançou o desafio geral: "escreva o que você vê da cadeira onde
está sentado".
Estávamos na dependência onde fora a
bilheteria. Em 1998 a MRS Logística, que adquiriu a concessão da ferrovia da
Rede Ferroviária Federal, extinguiu o trem de passageiros e logo em seguida o
ramal de Jacareí. A estação ficou abandonada até passar para a Fundação
Cultural que se instalou em três prédios situados no hoje Pátio dos Trilhos. Um
deles era o que estávamos.
A sala é grande, alta, com pé direito de
quatro metros e portas de madeira escura maciça e envernizada, com caixilhos
fixos na parte superior para ajudar na iluminação do ambiente. Os ladrilhos
importados (provavelmente portugueses), compunham o velho piso. Boa parte deles
substituída por um cimentado rústico, ainda resistem ao passar dos anos sem
perder a dignidade de dar o toque decorativo à antiga sala dos bilhetes.
Demorei alguns minutos na escrita sobre
aquele piso que me remetia ao passado, quando fui interrompido por um
burburinho frenético de pessoas, chiado de caldeira, música de viola, troca de
cumprimentos. Olho para a sala e vejo a minha frente o bilheteiro a vender
passagens aos últimos passageiros que iam embarcar num trem ali estacionado,
cuja presença dei-me conta por uma parte dos ruídos, pois os janelões estavam
fechados. O homem executava o trabalho com rapidez e concentração, mas sem
perder os toques de cortesia típicos de quem leva a sério o cargo que exerce.
"Pois não, doutor Aníbal, aqui está sua passagem, boa viagem", dizia
para um e, logo em seguida, para outra, "olá, dona Dorinha! Não fique
aflita, o trem espera! Pronto, está aqui sua passagem... Oh! não tem mais
trocado? Dou um jeito: pronto, aqui está seu troco, boa viagem, passar
bem!"
Olho através do corredor à minha frente,
que dá acesso ao saguão principal e noto que o movimento de passantes diminuía
gradativamente: o vendedor de "biscoutos", parara de gritar o
produto, o violeiro acabara de cantar a última música e guardava o instrumento
quando ouviu-se um apito agudo e longo; era o segundo: "o trem vai
sair", pensei.
Levantei a cabeça bruscamente e vi que na
sala todos colegas da oficina há tinham terminado o próprio texto me olhavam já
com certa impaciência pela demora que eu mantinha em terminar o meu. Meio
encabulado, pedi desculpas, dei uma explicação qualquer e fechei o caderno. Lá
fora, ouvia-se barulho dos carros passando pela rua ao lado, mas os grilos
ainda cantavam ao redor da velha estação. Era o que restava da poesia do Pátio
dos Trilhos, que teimava em resistir.
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