O poder da mente
"Há coisas no ar além dos aviões de carreira" (Barão de Itararé)
Os antigos
telefones de disco costumavam ser trancados pelos proprietários com um pequeno
cadeado que ao ser colocado em dois orifícios do disco impedia que o aparelho fosse usado sem a devida autorização. Você
deve se lembrar. O que poucos sabiam é que o sistema de ligação telefônica funciona pela mecânica de ligar e
desligar o aparelho. O disco (hoje o teclado) apenas executa o liga-desliga.
Por exemplo, se
ao invés de usar o disco (ou o teclado) você ligar e desligar com certa rapidez a peça móvel
que sustenta o fone (gancho) consegue o mesmo efeito de discagem ou do acionamento das teclas. Assim, se você quiser registrar o número 2 bata
rapidamente duas vezes na parte móvel do gancho; para o 5, cinco vezes, para o
0 é preciso dez batidas rápidas. Pronto, ensinei.
Fiz
em São Paulo, na década de 1970, um curso que se propunha a mostrar que a força
do pensamento é algo real e domável para qualquer situação do cotidiano. O curso prometia que em uma
semana sairíamos craques em “poder da mente”. Os bons na
matéria. Fui na onda. Ainda guardo a carteirinha de aluno do “Super Mind
Control” em cuja foto nem me reconheço.
Havia
mais de 50 pessoas na minha classe. Gente boa de cabeça. Alguns se tornaram
famosos como Lauro Trevisan, por exemplo. Logo no primeiro dia já nos
entrosamos formando vários grupelhos por afinidade como é normal em cursos
dessa natureza.
Amândio
José Damas, um dos colegas, funcionário de médio escalão da coletoria estadual
da Barra Funda, parecia diferente. Era daquele tipo que em toda classe existe um,
seja qual for o curso. Amândio entendia as aulas à maneira dele, fazia
perguntas absurdas principalmente durante a “hora do recreio”, quando geralmente comentávamos os assuntos das aulas. Amândio sempre tinha uma pergunta “nada a ver”; fora do contexto.
Havíamos adotado uma estratégia para lidar com ele. Em classe, quando Amândio aparecia com um questionamento, dizíamos que a resposta seria dada “na hora do recreio” e, quando chegava o momento, divertíamos deixando Amândio mais confuso com as respostas mais
absurdas possíveis que inventávamos.
------
No
recreio da penúltima noite eis que, de novo, surge o Amândio perguntando: “Será que esse negócio de poder da mente funciona
mesmo?!” Veja a dúvida que ele ainda tinha já quase no final do curso. Depois
do bombardeio de respostas estapafúrdias – “não só funciona como também
funciona” ou “só não funciona quando a mente não funciona!” etc. – o pobre do
Amândio conseguiu explicar-se: precisava telefonar para casa e o único aparelho
telefônico da escola estava com o disco trancado a cadeado. Segundo ele havia
apurado, ninguém na secretaria tinha a chave para liberar o aparelho que ficava
numa sala contígua vazia àquela hora.
Amândio
contou-nos que estivera até então “forçando a mente” (palavras dele) sem
sucesso, na tentativa de comunicar-se “telepaticamente” (coisas dele) com a mãe
em casa. Isto para que ela então lhe telefonasse (Celular não existia e era inviável
sair dali à cata de telefone naquela hora da noite naquele local) já que se mostrava impossível fazer uma ligação ali.
“Esqueça a telepatia, Amândio! Fale pelo telefone da escola mesmo, apesar do cadeado, usando o poder da mente. Afinal pra que você está fazendo o curso?” – disse-lhe eu com a maior expressão de naturalidade que consegui assumir. Percebi seus olhos brilharem com a novidade.
Sem
esperar dele qualquer reação, puxei-o pelo braço em direção à
secretaria onde ficava o aparelho e, atrás de nós, veio todo nosso grupo já antecipando a diversão.
Jamais brinque com fogo!
Ao
lado do telefone, caprichei na encenação. Pedi ao Amândio que se concentrasse o
que ele obedeceu, de maneira exagerada até, sem contestar. Depois, disse-lhe que fosse batendo
rapidamente com o dedo no gancho do aparelho quantas vezes representasse cada
algarismo do número da linha. Amândio, meio que hipnotizado, obedeceu: 3 (deu
três batidas), 4 (quatro batidas) e assim foi, 7, 2, 2, 8, era o número do
telefone da casa dele.
Dois
segundos se passaram depois da última pancadinha e “truuuuuu”... Maravilha! O telefone
chamava. Quando alguém atendeu, todos nós assistimos a um Amândio extasiado
gritando no aparelho: “Mãe!!! Acabo de ligar pra você pelo poder da mente!!!”
------
Não
tivemos tempo para continuar com a brincadeira porque o intervalo terminou e o
pessoal já estava entrando para a segunda parte da aula da noite. Deixamos a
sós um Amândio feliz e eufórico conversando com a mãe pelo telefone e fomos para a sala de
aula tentar aprender de vez a lidar com a cachola. O
assunto ‘ligar telefone pelo poder da mente’ morreu ali e ninguém mais tocou
nele no dia seguinte, envolvidos que ficamos com o último dia de aula.
------
O
tempo passou como sempre faz. Certo dia, quase 25 anos depois, por essas
coincidências da vida, tive de ir à coletoria estadual da Barra Funda tirar uma
certidão para a empresa em que trabalhava. Cheguei ao local bem antes do expediente
começar para ganhar tempo. De repente, quem vejo passar por mim no saguão de
espera? O próprio: Amândio José Damas. Nem havia me lembrado de que ele
trabalhava ali.
Estava
outro homem. Mais amadurecido e muito seguro de si, sem aquela expressão
calhorda que mantinha na época do curso. Soube depois que ele fora promovido a
chefe de qualquer coisa na repartição.
Amândio
reconheceu-me, foi cordial e insistiu para que eu entrasse no recinto reservado aos
funcionários. Na repartição não havia quase ninguém ainda, apenas o pessoal da
copa. Era para um cafezinho que ele me convidava. Convenceu-me e aceitei.
Entramos.
No meio da conversa, disse-lhe o porquê de estar ali e ele, solícito, falou-me
dos documentos exigidos para o meu caso e mostrou-me que faltava determinado cartão obrigatório
de ser apresentado “no original”. Havia nele certo código de segurança que era
preciso conferir.
Mais
uma vez fui surpreendido pela generosidade do Amândio. Sugeriu-me que telefonasse
para a empresa – poderia usar o telefone ali mesmo, da coletoria – e obtivesse
o tal número exigido sem que eu precisasse apresentar o cartão que havia deixado no trabalho.
Ele (!) liberaria assim mesmo a tal certidão, pois, confiava plenamente (!!) em
mim, seu velho amigo (!!!) de classe. Nessa altura, passei a me sentir
envergonhado e arrependido – um lixo até – por ter feito o que fizera para o pobre Amândio 25 anos atrás. Imagine! Como pude aproveitar a inocência de um sujeito como ele só para fazer graça perante os colegas?” pensei autocensurando-me.
Encurralado
pelas circunstâncias, fui em frente. Dirigi-me ao telefone, Amândio foi logo
atrás, e quando olhei para o aparelho... “Está com cadeado!”, falei alto sem
refletir, pego que fui de surpresa. De fato, tratava-se de um antigo aparelho e
com o inconveniente cadeado ali a fim de tentar impedir ligações.
Amândio
olhou para mim e como que adivinhando a razão da surpresa disse: “Use o poder
da mente para ligar, ué!” Fiquei meio indeciso, mas ele abriu um largo
sorriso fazendo entender que estava tudo bem entre nós, e acabamos por rir
juntos.
Amândio
saiu dali em direção ao seu gabinete e eu, reanimado, claro que ainda meio sem jeito, pus-me
automaticamente a dar as tais pancadinhas ridículas no gancho do telefone,
exatamente como ele fizera a meu comando naquela agora inesquecível noite.
Sentia-me incomodado, mesmo sem muitas pessoas ali a me observar (aos poucos os
funcionários começavam a chegar). Para alívio meu, entretanto, a ligação foi
completada, falei com quem devia, anotei o que precisava. Pedi que chamassem o Amândio e
passei-lhe a informação.
Sempre cordial, meu agora declarado amigo despediu-se com palavras de praxe – “prazer em revê-lo, apareça qualquer dia” etc. – e instruiu-me: “Vou para minha sala. Daqui a cinco minutos começa o expediente, o pessoal todo chega, providencio a liberação de sua certidão e peço para alguém lhe entregar rapidinho ali no saguão, certo?” Agradeci-lhe, ainda desconfortado pelo remorso, e fui aguardar no saguão junto a um público já numeroso àquela altura.
Sempre cordial, meu agora declarado amigo despediu-se com palavras de praxe – “prazer em revê-lo, apareça qualquer dia” etc. – e instruiu-me: “Vou para minha sala. Daqui a cinco minutos começa o expediente, o pessoal todo chega, providencio a liberação de sua certidão e peço para alguém lhe entregar rapidinho ali no saguão, certo?” Agradeci-lhe, ainda desconfortado pelo remorso, e fui aguardar no saguão junto a um público já numeroso àquela altura.
------
Demorou
menos do que imaginei para uma repartição pública. Quinze minutos depois, se
tanto, uma jovem e sorridente funcionária entregava-me a tal certidão. Puxei
conversa para lhe ser agradável e me ocorreu comentar sobre o aparelho
telefônico. “Gostei de ver vocês manterem conservado um telefone clássico em
meio a toda essa parafernália moderna, igual a esse que usei ainda há pouco aqui na
repartição”, disse-lhe. Ela me olhou um tanto surpresa, enquanto eu admirado concluía
em seguida: “e ainda funcionando tão bem!”.
“Funcionando?!”,
– comentou a moça com uma expressão estranha – “Nunca foi ligado aqui. Usamos
essa relíquia trazida pelo doutor Amândio como enfeite. Às vezes serve para
segurar papéis a fim de que não voem com o vento”, disse ela e concluiu abaixando
a voz: “acho até que se trata de algum objeto de estimação do doutor Amândio”,
segredou.
Então, fui eu quem ficou estranho. Não me conformei com aquilo e pedi à moça que fôssemos
até o aparelho, o que ela fez um tanto constrangida porque o expediente já
havia começado e ela tinha mais o que fazer, com certeza.
Diante
do que acabava de me acontecer, entretanto, nada seria capaz de deter minha
ânsia de examinar o velho telefone. Chegamos até ele, coloquei o fone no ouvido:
de fato, mudo! Ergui o aparelho da mesa examinei-o por baixo, pelos lados e
nada. Estava solto sem nenhum fio que o ligasse a qualquer circuito.
Tive
impulso de procurar Amândio para ouvir explicações, mas me contive. Deu-me a
impressão de que ele já estava o tempo todo me observando à distância com ar de
desforra. Agradeci à moça e saí dali o mais rápido que pude sem olhar para
nada.
Lá
fora, a correria dos paulistanos me devolveu à vida real e acabou por
transformar meu remorso em alívio. Até porque eu acabava de pagar uma dívida
moral de mais de 25 anos. “Chumbo trocado não dói”, como se diz sabiamente no
Vale do Paraíba. Como
aquilo aconteceu?! Nem me interessou, nem me interessa saber – coisas do Super
Mind, quem sabe?! Será que esse negócio de poder da mente funciona mesmo?! Acho que preciso fazer o curso de novo.
(*) Benedito Veloso é
jornalista e membro da Academia Jacarehyense de letras
Nenhum comentário:
Postar um comentário