domingo, 24 de abril de 2016

O palco da vida exige representação tão boa como a do teatro ou da TV

Grupo de Artes Cênicas da Universidade de Vila Velha - ES (2013) - (Foto:Divulgação)

Provavelmente, em certo momento você desejou ser um ator ou atriz de cinema, televisão ou teatro. É normal, está no DNA. A magia da representação cênica faz parte da natureza humana. Veja o frisson que nos causou a colega Dinamara, da Academia Jacarehyense de Letras, ao dar entrevista à TV Vanguarda na manhã de domingo (24). Porém, mesmo sem nunca ter pensado e atuar no teatro, se for o seu caso, com certeza você também utiliza sem perceber essa que é a mais antiga forma de linguagem que o mundo conhece: a da comunicação por gestos, sinais e posturas.

Voltando ao passado, ainda há milênios, aquele misto de gesticulação e grunhidos aperfeiçoou-se e gerou o código da fala e, depois, a representação teatral. Foi num tempo muito, muito remoto que provavelmente jamais saberemos o quanto. O fato é que trouxemos conosco, milênios a dentro, esse complexo comunicativo que herdamos dos nossos pioneiros antepassados.  

Por isso quando nos comunicamos com alguém por meio da fala, utilizamos mais ou menos cada um desses recursos citados e adaptados obviamente ao nosso jeito de ser e ao nosso “treinamento” inconsciente no dia-a-dia. Um ator em cena utiliza muito bem quase todos esses recursos – já que é treinado para isso – daí o fato de ele nos impressionar mais ao representar um personagem se comparado ao cidadão comum quando “representa seu papel” no universo cotidiano.
   
Para reforçar a tese, convido você a observar os animais. Veja como o cão late e gesticula de várias maneiras dependendo da circunstância, ou seja, do que tenta transmitir. O gato quando se defronta com um cachorro sinaliza de maneira a não deixar dúvida quanto ao que está querendo “dizer” com a postura do corpo. O macaco, então, dispensa explicações. Enfim, é o tipo de comunicação de cada um deles.

Essa combinação de gestos, posturas e sons são fatores decisivos para se obter um resultado intencional adequado para cada situação que aparece. O homem, que um dia passou por todo esse primarismo, desenvolveu essas técnicas de maneira a transformá-las nos diversos falares da comunicação verbal de um lado e nas não-verbais (cênicas) de outro.

A professora de arte dramática, atriz e declamadora  Maud Scheerer, famosa na primeira metade do século passado, escreveu na década de 1940 na revista The Rotarian (Rotarianos) um artigo que já naquela época, há quase 80 anos, conclamava que a comunicação humana se orientasse pela representação autêntica da interpretação teatral. A revista Seleções fez uma condensação desse artigo na primeira edição que circulou no Brasil (abril de 1942). Segundo Maud, “aqueles que representam bem seu papel na vida definem e constroem a própria personalidade”.

Entendo que nascia nessa época a comunicação e, de lambujem, o cerimonial modernos, assuntos que trataremos em futuras postagens.

sexta-feira, 22 de abril de 2016

O alienígena





Ali pelos anos 1970, eram comuns as associações de estudos sobre discos voadores, abduções e supostos visitantes de outros planetas com a missão bisbilhotar o que nós terráqueos fazemos por aqui. Hoje, essa prática é bem mais discreta, como se outros mundos e seus eventuais habitantes tivessem perdido o interesse por nossas peripécias. Também existiam indivíduos dessas associações que exageravam nas pesquisas e se tornavam fanáticos a ponto de, os mais frágeis, entrarem em parafuso e necessitarem de assistência médica ou psicoterapêutica para voltar ao normal.

Meu amigo Sérgio Lima era membro ativo da confraria “Não Somos os Únicos”, cuja sede ficava na parte nobre do bairro Vila Mariana, em São Paulo. Certa vez contou-me que estava preocupado com o presidente da entidade, professor Seveso Bastos, que não passava bem. Bastos estava à beira de um colapso mental por se dedicar, havia anos, a frustradas tentativas de atrair a visita de um extraterrestre à entidade; unzinho que fosse, mas não havia jeito. Para o professor, a presença de um E.T. na sede da Não Somos os Únicos seria demonstração de respeito à confraria presidida por ele e ficaria consolidada a convicção que todos mantinham sobre a existência de vida inteligente universo a fora.

Desafortunadamente para Bastos, nenhum extraterrestre havia atendido suas tentativas de contato até então, deixando-o em situação ruim perante seus seguidores cujos mais críticos já insinuavam que “somos sim os únicos". Um contato imediato, e o mais imediato possível, portanto, começava a tornar-se questão de honra.

Tanta expectativa acabou por provocar no professor Bastos um esgotamento nervoso sério que exigiu cuidados especiais. Lima disse que depois de uma semana internado em um hospital paulista foi recomendada a Bastos uma temporada de repouso fora da capital. Como meu amigo tinha dois apartamentos em prédios de Ubatuba, cidade do litoral norte paulista, e um deles vago, convenceu o presidente e a mulher que passassem uns dias nele. Ficava na região central com frente para a praia, fácil acesso aos melhores pontos do comércio e outras regalias, ideal para uma revitalização psicológica. Aceita a oferta, lá se foram o professor Bastos e a mulher ao encontro da brisa marinha e do sol da avenida Iperoig, em Ubatuba.

O contato

O outro apartamento de Lima ficava distante cerca de 20 quilômetros do primeiro, na praia de Maranduba. Era habitado havia algum tempo por um irmão dele, Ângelo, de seus 40 anos e que cuidava dos interesses de Lima no litoral em troca de casa, comida e uma pequena ajuda financeira. Ângelo nascera surdo-mudo e comunicava-se por sinais e sons que emitia sem nexo porque jamais havia tido um aprendizado típico para esses casos. Lima citou o irmão, de passagem, para a mulher de Bastos, mas disse que não se preocupasse porque raramente ele ia ao centro e, se fosse, o zelador do prédio se encarregaria das explicações.

Porém, uma dessas “raras vezes” que Ângelo ia à região central aconteceu dois dias depois da chegada do casal a Ubatuba. Começava anoitecer e ele voltava a pé pela Iperoig, rumo à estação rodoviária, quando viu luz acesa no apartamento do irmão. Ângelo imaginou que Lima e a família estivessem ali e resolveu subir para uma "mordida" financeira de praxe. Como era conhecido do zelador, não teve problemas para entrar, subir a escada rapidamente até o segundo andar do pequeno prédio sem elevador. Tocou a campainha e Bastos atendeu. Ângelo, ao ver o estranho, emitiu um grunhido misto de surpresa e decepção, o bastante para Bastos agarrá-lo pelo braço e eufórico gritar: “Eu sabia que você viria! Eu sabia!”.

Ângelo, que nada ouvia, não sabia o que fazer. Com medo de ser confundido com um assaltante ou coisa parecida, apontava desesperadamente para cima querendo dizer que o zelador, que morava no último andar, o conhecia. Para isto, apontava para si e para o alto, o que deixava Bastos mais eufórico: “eu sei que você veio do céu, eu sei, entre e fique aqui!”, dizia, ao mesmo tempo em que puxava o assustado Ângelo para dentro. Nisso, chegou a mulher, também com medo, mas menos influenciável pelas ideias do marido, e disse com voz firme o que a maioria das mulheres dizem em situações como essa: “pare com isso, Bastos o que vão pensar de nós os vizinhos?” Bastos, impactado, caiu em si por um instante e soltou Ângelo que aproveitou o momento para escapulir e desaparecer dali com a maior velocidade que conseguiu. Diga-se em justificativa à atitude do professor que o tipo físico de  Ângelo o comprometia. Rapava o pouco cabelo que tinha, era baixo, atarracado e excessivamente queimado de sol. Uma figura que alguém perturbado da cabeça confundiria como o que melhor lhe conviesse, menos com um ser humano normal.

Acabou naquele momento a temporada litorânea de recuperação do professor Seveso Bastos, cujo quadro de saúde piorou ainda mais. Lima deixou a confraria chateado com o ocorrido. Outros foram se desligando aos poucos até que ela se dissolvesse por falta de seguidores e de pagamento do aluguel da sede. Lima atribui o episódio ao costume humano de se preocupar com os extraterrestres em meio a tantos problemas com os terrestres. Bastos morreu alguns anos depois, ingratamente convencido de que Lima queria mesmo era seu lugar na presidência da Não Somos os  Únicos, e tramou a farsa. Ângelo morreu na virada do século sem ter entendido nada do episódio (na verdade nunca se interessou). Lima está por aí dedicando-se à pintura em porcelana. 
                                                                                                                                                             




quinta-feira, 21 de abril de 2016

Arte de ver a arte - II

Quando  postei  pela primeira vez um quadro pintado por meu amigo Walter Handro em https://www.blogger.com/blogger.g?blogID=5358227568290884213#editor/target=post;postID=602777572134841404;onPublishedMenu=allposts;onClosedMenu=allposts;postNum=2;src=postname  eu ainda não tinha pedido permissão a ele para postar uma foto da obra (comentada no texto), até para não estragar a surpresa da postagem. Depois de ler o artigo, ele gentilmente me sinalizou que eu poderia publicá-lo. Assim, faço isso agora:


sábado, 16 de abril de 2016

O poder da mente



"Há coisas no ar além dos aviões de carreira" (Barão de Itararé)



Os antigos telefones de disco costumavam ser trancados pelos proprietários com um pequeno cadeado que ao ser colocado em dois orifícios do disco impedia que o aparelho fosse usado sem a devida autorização. Você deve se lembrar. O que poucos sabiam é que o sistema de ligação telefônica funciona pela mecânica  de ligar e desligar o aparelho. O disco (hoje o teclado) apenas executa o liga-desliga.
Por exemplo, se ao invés de usar o disco (ou o teclado) você ligar e desligar com certa rapidez a peça móvel que sustenta o fone (gancho) consegue o mesmo efeito de discagem ou do acionamento das teclas.  Assim, se você quiser registrar o número 2 bata rapidamente duas vezes na parte móvel do gancho; para o 5, cinco vezes, para o 0 é preciso dez batidas rápidas. Pronto, ensinei.

Fiz em São Paulo, na década de 1970, um curso que se propunha a mostrar que a força do pensamento é algo real e domável para qualquer situação do cotidiano. O curso prometia que em uma semana sairíamos craques em “poder da mente”. Os bons na matéria. Fui na onda. Ainda guardo a carteirinha de aluno do “Super Mind Control” em cuja foto nem me reconheço.
Havia mais de 50 pessoas na minha classe. Gente boa de cabeça. Alguns se tornaram famosos como Lauro Trevisan, por exemplo. Logo no primeiro dia já nos entrosamos formando vários grupelhos por afinidade como é normal em cursos dessa natureza.

Amândio José Damas, um dos colegas, funcionário de médio escalão da coletoria estadual da Barra Funda, parecia diferente. Era daquele tipo que em toda classe existe um, seja qual for o curso. Amândio entendia as aulas à maneira dele, fazia perguntas absurdas principalmente durante a “hora do recreio”, quando geralmente comentávamos os assuntos das aulas. Amândio sempre tinha uma pergunta “nada a ver”; fora do contexto. Havíamos adotado uma estratégia para lidar com ele. Em classe, quando Amândio aparecia com um questionamento, dizíamos que a resposta seria dada “na hora do recreio” e, quando chegava o momento, divertíamos deixando Amândio mais confuso com as respostas mais absurdas possíveis que inventávamos.
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No recreio da penúltima noite eis que, de novo, surge o Amândio perguntando: “Será que esse negócio de poder da mente funciona mesmo?!” Veja a dúvida que ele ainda tinha já quase no final do curso. Depois do bombardeio de respostas estapafúrdias – “não só funciona como também funciona” ou “só não funciona quando a mente não funciona!” etc. – o pobre do Amândio conseguiu explicar-se: precisava telefonar para casa e o único aparelho telefônico da escola estava com o disco trancado a cadeado. Segundo ele havia apurado, ninguém na secretaria tinha a chave para liberar o aparelho que ficava numa sala contígua vazia àquela hora.
Amândio contou-nos que estivera até então “forçando a mente” (palavras dele) sem sucesso, na tentativa de comunicar-se “telepaticamente” (coisas dele) com a mãe em casa. Isto para que ela então lhe telefonasse (Celular não existia e era inviável sair dali à cata de telefone naquela hora da noite naquele local) já que se mostrava impossível fazer uma ligação ali.

“Esqueça a telepatia, Amândio! Fale pelo telefone da escola mesmo, apesar do cadeado, usando o poder da mente. Afinal pra que você está fazendo o curso?” – disse-lhe eu com a maior expressão de naturalidade que consegui assumir. Percebi seus olhos brilharem com a novidade.
Sem esperar dele qualquer reação, puxei-o pelo braço em direção à secretaria onde ficava o aparelho e, atrás de nós, veio todo nosso grupo já antecipando a diversão.

Jamais brinque com fogo!

Ao lado do telefone, caprichei na encenação. Pedi ao Amândio que se concentrasse o que ele obedeceu, de maneira exagerada até, sem contestar. Depois, disse-lhe que fosse batendo rapidamente com o dedo no gancho do aparelho quantas vezes representasse cada algarismo do número da linha. Amândio, meio que hipnotizado, obedeceu: 3 (deu três batidas), 4 (quatro batidas) e assim foi, 7, 2, 2, 8, era o número do telefone da casa dele.

Dois segundos se passaram depois da última pancadinha e “truuuuuu”... Maravilha! O telefone chamava. Quando alguém atendeu, todos nós assistimos a um Amândio extasiado gritando no aparelho: “Mãe!!! Acabo de ligar pra você pelo poder da mente!!!”
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Não tivemos tempo para continuar com a brincadeira porque o intervalo terminou e o pessoal já estava entrando para a segunda parte da aula da noite. Deixamos a sós um Amândio feliz e eufórico conversando com a mãe pelo telefone e fomos para a sala de aula tentar aprender de vez a lidar com a cachola. O assunto ‘ligar telefone pelo poder da mente’ morreu ali e ninguém mais tocou nele no dia seguinte, envolvidos que ficamos com o último dia de aula.

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O tempo passou como sempre faz. Certo dia, quase 25 anos depois, por essas coincidências da vida, tive de ir à coletoria estadual da Barra Funda tirar uma certidão para a empresa em que trabalhava. Cheguei ao local bem antes do expediente começar para ganhar tempo. De repente, quem vejo passar por mim no saguão de espera? O próprio: Amândio José Damas. Nem havia me lembrado de que ele trabalhava ali.
Estava outro homem. Mais amadurecido e muito seguro de si, sem aquela expressão calhorda que mantinha na época do curso. Soube depois que ele fora promovido a chefe de qualquer coisa na repartição.
Amândio reconheceu-me, foi cordial e insistiu para que eu entrasse no recinto reservado aos funcionários. Na repartição não havia quase ninguém ainda, apenas o pessoal da copa. Era para um cafezinho que ele me convidava. Convenceu-me e aceitei.

Entramos. No meio da conversa, disse-lhe o porquê de estar ali e ele, solícito, falou-me dos documentos exigidos para o meu caso e mostrou-me que faltava determinado cartão obrigatório de ser apresentado “no original”. Havia nele certo código de segurança que era preciso conferir.
Mais uma vez fui surpreendido pela generosidade do Amândio. Sugeriu-me que telefonasse para a empresa – poderia usar o telefone ali mesmo, da coletoria – e obtivesse o tal número exigido sem que eu precisasse apresentar o cartão que havia deixado no trabalho. Ele (!) liberaria assim mesmo a tal certidão, pois, confiava plenamente (!!) em mim, seu velho amigo (!!!) de classe. Nessa altura, passei a me sentir envergonhado e arrependido – um lixo até – por ter feito o que fizera para o pobre Amândio 25 anos atrás. Imagine! Como pude aproveitar a inocência de um sujeito como ele só para fazer graça perante os colegas?” pensei autocensurando-me.
Encurralado pelas circunstâncias, fui em frente. Dirigi-me ao telefone, Amândio foi logo atrás, e quando olhei para o aparelho... “Está com cadeado!”, falei alto sem refletir, pego que fui de surpresa. De fato, tratava-se de um antigo aparelho e com o inconveniente cadeado ali a fim de tentar impedir ligações.
Amândio olhou para mim e como que adivinhando a razão da surpresa disse: “Use o poder da mente para ligar, ué!” Fiquei meio indeciso, mas ele abriu um largo sorriso fazendo entender que estava tudo bem entre nós, e acabamos por rir juntos.

Amândio saiu dali em direção ao seu gabinete e eu, reanimado, claro que ainda meio sem jeito, pus-me automaticamente a dar as tais pancadinhas ridículas no gancho do telefone, exatamente como ele fizera a meu comando naquela agora inesquecível noite. Sentia-me incomodado, mesmo sem muitas pessoas ali a me observar (aos poucos os funcionários começavam a chegar). Para alívio meu, entretanto, a ligação foi completada, falei com quem devia, anotei o que precisava. Pedi que chamassem o Amândio e passei-lhe a informação.
Sempre cordial, meu agora declarado amigo despediu-se com palavras de praxe – “prazer em revê-lo, apareça qualquer dia” etc. – e instruiu-me: “Vou para minha sala. Daqui a cinco minutos começa o expediente, o pessoal todo chega, providencio a liberação de sua certidão e peço para alguém lhe entregar rapidinho ali no saguão, certo?” Agradeci-lhe, ainda desconfortado pelo remorso, e fui aguardar no saguão junto a um público já numeroso àquela altura.

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Demorou menos do que imaginei para uma repartição pública. Quinze minutos depois, se tanto, uma jovem e sorridente funcionária entregava-me a tal certidão. Puxei conversa para lhe ser agradável e me ocorreu comentar sobre o aparelho telefônico. “Gostei de ver vocês manterem conservado um telefone clássico em meio a toda essa parafernália moderna, igual a esse que usei ainda há pouco aqui na repartição”, disse-lhe. Ela me olhou um tanto surpresa, enquanto eu admirado concluía em seguida: “e ainda funcionando tão bem!”.
“Funcionando?!”, – comentou a moça com uma expressão estranha – “Nunca foi ligado aqui. Usamos essa relíquia trazida pelo doutor Amândio como enfeite. Às vezes serve para segurar papéis a fim de que não voem com o vento”, disse ela e concluiu abaixando a voz: “acho até que se trata de algum objeto de estimação do doutor Amândio”, segredou.
Então, fui eu quem ficou estranho. Não me conformei com aquilo e pedi à moça que fôssemos até o aparelho, o que ela fez um tanto constrangida porque o expediente já havia começado e ela tinha mais o que fazer, com certeza.
Diante do que acabava de me acontecer, entretanto, nada seria capaz de deter minha ânsia de examinar o velho telefone. Chegamos até ele, coloquei o fone no ouvido: de fato, mudo! Ergui o aparelho da mesa examinei-o por baixo, pelos lados e nada. Estava solto sem nenhum fio que o ligasse a qualquer circuito.
Tive impulso de procurar Amândio para ouvir explicações, mas me contive. Deu-me a impressão de que ele já estava o tempo todo me observando à distância com ar de desforra. Agradeci à moça e saí dali o mais rápido que pude sem olhar para nada.

Lá fora, a correria dos paulistanos me devolveu à vida real e acabou por transformar meu remorso em alívio. Até porque eu acabava de pagar uma dívida moral de mais de 25 anos. “Chumbo trocado não dói”, como se diz sabiamente no Vale do Paraíba. Como aquilo aconteceu?! Nem me interessou, nem me interessa saber – coisas do Super Mind, quem sabe?! Será que esse negócio de poder da mente funciona mesmo?! Acho que preciso fazer o curso de novo.







(*) Benedito Veloso é jornalista e membro da Academia Jacarehyense de letras

Arte de ver a arte


O pintor Walter Handro



Meu amigo, Walter Handro, mora em São Paulo e é pintor de quadros. Tem vários trabalhos premiados em exposições e um deles me toca muito. É da série impressionista "paisagem urbana" que retrata uma favela típica com barracos coloridos em traços disformes para dar o clima propício. Vejo no quadro a mulher com lata de água na cabeça, grávida, acompanhada por uma garotinha mirrada, de seus cinco anos, que a segue saltitante segurando uma bonequinha tão pobre quanto as duas. Um cachorro vadio, esquálido, modorreia ao sol que castiga àquela hora. Mais adiante, homens em pé fazem samba ao redor de um negro com vermelhos nos olhos que se esforça para acompanhar a cantilena ao violão.

Há mulheres debruçadas em uma ou outra janela; outras que mal aparecem pelas portas sempre abertas e crianças que levam tabefes e choram. Outras, ajudam levando lixo aonde parece ser o canto em que os moradores descarregam o quase nada que lhes sobra da pobreza. Enfim, são centenas de flagrantes da vida de gente que toca o dia-a-dia quase que por milagre. Não há bandidos nessa comunidade. Na desse quadro, não.

Essa pintura mexe comigo.  Às vezes “viajo”, ao contemplá-la, imaginando a adolescente de 15 anos cheia de sonhos que logo vai estar prenha e abandonada por quem a engravidou. Vejo certa mãe que lava roupa pra fora, cuida da penca de filhos e mal ganha pra comer.

Relato essas coisas para comentar uma característica das pinturas de Walter Handro: embora ele jamais retrate pessoas ou qualquer ser vivo em seus quadros, a gente “vê”  as pessoas ali. O quadro que acabo de descrever pertence a uma série de favelas que Handro pintou, só mostra os barracos, nada mais. 

Falei sobre isso numa exposição de artes, certa vez. Um crítico me explicou que se trata de uma característica de raros artistas, cujos trabalhos sugerem vidas e outras imagens através da composição de quadros que não as têm. “Talvez uma das características pouco exploradas da arte, já que não são todos os artistas que atingem um estágio avançado desses”, comentou. Pensei reproduzir o trabalho aqui, mas faço diferente: sugiro que você “veja” a pintura, embora o quadro não esteja presente, e nele os barracos. Com um pouco mais de concentração, vai ver também, segundo seu conhecimento de mundo, pessoas no cenário.  Questão de treino, ou melhor, de botar sentimento pra fora; tente.



segunda-feira, 4 de abril de 2016

Questão de texto


O professor Benedicto Sérgio Lencioni, ex-prefeito de Jacareí (SP), historiador reconhecido e respeitado membro da AJL (Academia Jacarehyense de Letras), foi mais uma vez a voz solitária na advertência de que comemorar o aniversário de sua cidade no dia 3 de abril, como aconteceu de novo este ano, não é historicamente correto. Os estudos de Lencioni remetem à data de 24 de novembro de 1653 como sendo a da fundação da Vila de Nossa Senhora da Conceição do Paraíba de Jacareí. Provavelmente, só a atual presidente da AJL, Ana Luiza do Patrocínio, também historiadora, e a ex, Salette Granato, silenciosamente concordam com a tese de que a data correta é 24 de novembro.

Nem o pré-candidato a prefeito, Izaías Santana (o Isaías dele é com “z” mesmo), ligado politicamente a Lencioni em passado recente, endossa a denúncia do erro histórico. Neste fim de semana, Izaías publicou anúncio nos jornais da cidade cumprimentando Jacareí pelos “364 anos”. Estaria errado mesmo que ele não quisesse apoiar o amigo. Aliás, na política, só o vereador Edinho Guedes faz algumas gestões a respeito do assunto, provocado inicialmente por Salette que também é funcionária do Legislativo. É: a ex-presidente da academia agita um pouco.

Existe farta argumentação do historiador na defesa de sua tese. Vou citar uma. Ao adotar 3 de abril como aniversário da cidade, quiseram se referir a 3 de abril de 1849, quando Jacareí foi elevada de vila à categoria de cidade. Nesse caso, seriam 167 anos e não 364 como quer a contagem oficial.
Pior é que a solução do problema parece bem mais simples, como pretendo explicar em matéria futura. O que estou sugerindo, agora, é que a Academia Jacarehyense de Letras compre a briga e passe a comemorar o aniversário de Jacareí no dia 24 de novembro por dois motivos importantes: O primeiro é o de apoiar seu respeitado membro ou convencê-lo de que está errado; o segundo já lhe mostro.

Adotando o que proponho, a academia passaria a comemorar os 363 (contagem correta) anos. Afinal, Lencioni foi seu presidente por três gestões e se não contar com anuência de seus 26 pares como pode esperar apoio de 250 mil habitantes da cidade? Comemorar em 3 de abril é ignorar o trabalho dele. Parece, também, que há um erro de interpretação de texto que pode ser perdoável a 249.973 pessoas, menos aos 27 acadêmicos de letras: A data de 3 de abril é oficialmente o “Dia do Município de Jacareí”, não o comemorativo à data de sua fundação. Veja 

http://legislacao.jacarei.sp.gov.br:85/jacarei/images/leis/html/L53602009.html