quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Flores amarelas no asfalto

Em dezembro de 1982 eu era, como ainda hoje, colaborador do jornal Diário de Jacareí. Certa vez, enviei por escrito um pedido de entrevista ao poeta e então prefeito Benedicto Sérgio Lencioni (foto), em final de mandato, com as perguntas. Ao invés de respondê-las, como eu esperava, ele enviou-me um de seus livros (Do meu amor e do meu amar) dizendo: “as respostas estão aí; é só encontrá-las”.
Pus-me a procurá-las e, de fato, estavam lá:

 Poeta, seus versos seguem a que escola?
 Tornei-me poeta peregrino,/ borboleta amiga do jardim/ em busca da flor do amor e do destino.

 Como encontra inspiração na aridez da política?
 (como) sonhador andante/ a percorrer as estradas intermináveis do desejo.

– É compensador?
 …só encontrei pelo chão,/ em vez da flor do amor, a flor que medra/ fria, dura, sem vida/ – a flor de pedra.

Na época, na rua Lamartine Delamare, 103, havia um quintal com uma velha e grande árvore que dava flores amarelas. Na florada, seus galhos carregados de pétalas atapetavam o asfalto da via como em protesto contra a feiura de uma enorme e velha fábrica vizinha semiabandonada, toda em sujos tijolos à vista. A ação da árvore impedia um enfeiamento ainda maior daquele pedaço da região central.

Algumas vezes, precisamos de uma árvore de flores amarelas em nossa vida para amenizar alguns caminhos feios. A poesia pode ser e é uma dessas, filosofei. Se a política do país, por exemplo, pertencesse à arquitetura, teria naquela tenebrosa construção uma convincente representante.
Voltemos à entrevista:

 Poeta, como foi acontecer de alguém com sua sensibilidade sucumbir ao “canto de sereia” da política?
 Um dia quis fugir dos estreitos limites desta vida que se esvai…
 Não é comprometer um passado e um futuro por tão pouco?
 O tempo tudo varre; tudo apaga.

 Todo poeta sofre ou sofreu por um caso de amor – verdade?
 Amei a vida como jamais alguém amou.
 Você costuma rezar?
 Não pode o ser que padece/ encontrar no mundo prece/ que lhe console o coração.
 Mas, como alivia, então, as mágoas?
 …eu sou o sensível que procura nos versos o remédio/ para curar as chagas deste tédio.

Estava ali uma fórmula de administrar a vida: versos para salvar a rua feia, para quebrar a monotonia da vida, para abafar as mágoas do coração. Resolvi, então, forçar o lado prefeito do poeta.

 Vamos falar um pouco de administração da cidade. Comenta-se muito o excesso de nomes concedidos às ruas que aconteceu ultimamente.
 A vida não é feita apenas com os vivos. Vivemos também com os nossos mortos.
 Agora que seu tempo de prefeito encerra-se diga umas palavras à cidade.
 Queria que jamais envelhecesses/ e que tua inocência não morresse.
 E o que mais lhe anima voltar à vida privada?
 Quero reencontrar “do outro lado” a cara do Sol redonda, colorida, quente!
 Será uma volta com alegria?
 Eu sairei pelos campos com as mãos cheias de flores a espalhar!
 Uma espécie de nascer de novo?
 Trarei  no rosto o sorriso/ da paz, manso e calmo,/ e meu corpo sem peso/ e sem dimensão/ flutuará nos ares/ sem os meus pesares/ quando o inverno partir.

 Você pretende voltar um dia à vida pública?

 Talvez algum dia, não sei/ Talvez um dia eu volte,/ talvez algum dia, / não sei./ Talvez!