
Quem curte cinema com certeza assistiu ao clássico “2001,
uma odisseia no espaço”. A película, de 1968, surpreende pelas mensagens embutidas
em um contexto simples que permitem uma leitura ousada. Várias leituras, aliás,
como demonstro a seguir. Não há nada do chavão comum em produções anteriores de
ficção científica. O diretor Stanley Kubrick alinhou cenas inteligíveis com certa sequencia lógica,
que começam com gorilas organizados em grupos, na aurora da humanidade, e terminam
com um solitário astronauta perdido em Júpiter no ano 2001. O enredo, sim, é nebuloso, equivocante, ao contrário das citadas cenas e de outros elementos do filme. Não
há monstros verdes que cospem fogo, muito menos garotas insinuantes de corpo
escultural e com olho na testa, nem outras besteiras do gênero. Ao contrário, há fatos
que se assemelham a nossa rotina terráquea. Por exemplo, momentos antes de o
astronauta participar de uma reunião importante em determinado satélite, onde lhe seria
explicada e confiada a secreta missão em Júpiter, ele conversa por videofone com
a filhinha que ficou na Terra e faz a ela recomendações bem domésticas.
Já ultrapassamos 2001 faz 15 anos. Muitas das “previsões”
implícitas no enredo do filme não aconteceram, outras, sim, e algumas foram além do previsto. Não
importa. As propostas de Kubrick foram outras, por exemplo, cada vez que alguém assistisse ao filme
teria um entendimento diferente ou nenhum, isto o filme conseguiu. Trata-se, pois, de um
trabalho intrigante que permite sempre novas leituras. Por isto, mesmo hoje, 50
anos depois, seu filme está longe de esgotar-se.
Essa a razão pela qual me baseio nele para comentar certa
passagem do último sarau da AJL (Academia Jacarehyense de Letras) que aconteceu no sábado, 27 de agosto, no Educa Mais, Centrom em Jacareí. O evento premiava poetas
brasileiros e de países de língua portuguesa que participaram do “Concurso Internacional
de Sonetos”. Fui o apresentador do sarau.
A certa altura da apresentação eu fiquei irritado com uma
jovem de seus 16 anos que, na plateia, não tirava os olhos do celular. Fixei-me
nela carrancudo para que se tocasse, sem sucesso. A jovem continuou absorta no aparelho
como se estivesse só. Em certo momento fez mais: passou a digitar, obviamente para
trocar mensagens com alguém de fora. Com muito esforço me contive e resolvi
deixar pra lá.
No momento da premiação, entretanto, aconteceu a surpresa. Ela
representava um dos premiados que mora em outro estado, e eu não sabia. Ao mencionarmos o participante,
a garota subiu ao palco e recebeu medalha por ele, como fizeram os demais representantes
que a antecederam.
Recebida a medalha, cumpriu-se o rito: ela posicionou-se
junto ao microfone para ler o soneto de seu poeta ausente, e aí aconteceu a
novidade: a jovem declamou lendo o poema “pelo celular”. Entendi tudo. Antes (confirmei mais tarde), ela não
tirava os olhos do aparelho porque tão logo começara a premiação percebeu que
era praxe o representante declamar o soneto do premiado e ela não havia trazido o do seu.
Rapidamente, então, entrou em contato com o poeta, pelo celular, e pediu-lhe o
texto que lhe foi enviado de pronto pelo aplicativo de mensagens. Tão rápido que ainda houve
tempo para que ela permanecesse em seu lugar lendo o soneto várias vezes para
não declama-lo de primeira leitura o que prejudicaria a interpretação.
Deu certo. Ela foi destaque na noite do sarau pela interpretação perfeita da leitura e
pela imagem agradável emprestada àquele momento. Vivemos a cena de uma jovem a ler para
a plateia adulta do presente um soneto clássico, em formato do passado, por meio
da tecnologia moderna, monitorada pelo autor à distância e amparada pela
plateia presente. Era o não-tempo a serviço da arte literária.
Foi vivido naquela apresentação um contraste à Stanley
Kubrick, que semelhantemente musicou a trilha sonora de “2001”, filme futurista, com a
introdução de “Assim Falou Zaratustra”(música de 1896), de Richard, e com a valsa “Danúbio
Azul” (1866), de Johann, ambos Strauss embora não-parentes. Kubrick é assim. Mescla tudo
num universo único em que tempo não existe. No sarau, nem se percebia o aparelho na mão da adolescente no momento em que ela declamava. Jovens,
adultos, celular, plateia, academia, jacareienses e jacarehyenses, tudo formava
um todo em nome da poesia.
Enquanto os demais líamos textos impressos elaborados dias
antes em antigas folhas de sulfite, alguns escritos rabiscados à mão, a adolescente fez a lição de casa valendo-se da tecnologia de ponta. E com a liberdade, que a juventude lhe permite, de
simbolizar a marcha ininterrupta da humanidade anunciando que o futuro será
feito ao jeito delas, humanidade e jovem.
Para terminar, no filme aqui mencionado aparece por três
vezes um grande e enigmático monólito negro. A pedra gigantesca emite sinais de
Júpiter. Percebe-se que a partir de cada aparição do objeto o mundo torna-se outro. Esse monólito
pode ser interpretado como um marco de novas eras. Curiosa é a semelhança
da peça de pedra a um celular comum hoje, tanto pelo formato delgado como pela cor escura.
Claro que em miniatura, mas tamanho não é problema para a tecnologia. Os
primeiros computadores mal cabiam em uma sala e agora...
Minha constatação não esgota o enigma do filme “2001”, mas
pode revelar que o celular é a quarta fase do monólito negro. Quem duvida que o
mundo a partir dele já se mostra outro?