domingo, 25 de setembro de 2016

O traje é a mensagem





Na manhã da quinta-feira, 26 de novembro de 2009, aconteceu em Jacareí o lançamento da pedra fundamental pela ampliação em mais 50% da área construída de um hospital de referência na RMVale (Região Metropolitana do Vale do Paraíba e Litoral Norte). Fizeram uma singela, porém, concorrida cerimônia. O calor estava insuportável.

Houve uma pequena confusão na chegada dos convidados porque os veículos que se dirigiam ao evento estavam sendo direcionados para o portão 2, quase nunca usado, para não tumultuar o acesso comum ao hospital. Só funcionários e médicos conheciam o tal portão alternativo, até porque ele ficava de certa forma escondido em rua lateral de pouca visibilidade. Na hora que chegava, o convidado era educadamente barrado na entrada principal, a mais conhecida, e informado de que, para tanto, deveria dar meia volta pelo quarteirão para acessar a entrada correta. Isso não deixou de causar um certo tumulto no local.

Uma das autoridades, um conhecido promotor de Justiça da cidade, chegava dirigindo o próprio carro quando viu o pequeno congestionamento formado pela situação. Sem saber do que se tratava, resolveu deixar o carro ali mesmo na rua, a certa distância do portão tumultuado, e seguir a pé até ele.  Ao chegar lá, foi informado de que deveria ir ao portão 2, como todo mundo. A autoridade ficou por uns momentos indecisa se deixava ou não o carro onde havia estacionado minutos antes e entrava a pé, quando o prefeito da vizinha Santa Branca, que já havia sido orientado corretamente, ao vê-lo ofereceu-lhe a pequena carona até o portão certo. Ele aceitou.

Por causa do calor, o prefeito de Santa Branca, que dirigia o carro oficial (ele era famoso por quase sempre dispensar motorista) estava de camisa-esporte, obviamente sem paletó, embora alinhadamente trajado. O promotor-carona, ao contrário, mantinha o protocolo e permanecia de paletó e gravata como o cargo e a sociedade à época lhe impunham em momentos como aquele. Aconteceu, claro, o que você já deve estar imaginando.

Ao chegarem ao portão 2, um dos recepcionistas, ao ver o carro com placa de prefeitura, dirigiu-se a quem? Ao carona de terno e gravata e disse-lhe, cerimoniosamente, apontando para a tenda de recepção armada no pátio do estacionamento: “Senhor Prefeito, o evento será ali, e depois que o ‘motorista’ deixar o senhor ele pode estacionar o carro logo mais à frente”, informou, olhando para o verdadeiro prefeito em mangas de camisa, para ver se ele havia entendido o recado. Sim, havia entendido “os recados” .  E você também, tenho certeza.


O sociólogo canadense Marshall McLuhan definiu que “o meio é a mensagem”, referindo-se aos meios de comunicação e a influência deles na sociedade. Não disse, mas, provavelmente teria dito se soubesse desse caso: “o traje também é um forte meio de comunicação”.

domingo, 4 de setembro de 2016

A quarta fase do monólito negro



Quem curte cinema com certeza assistiu ao clássico “2001, uma odisseia no espaço”. A película, de 1968, surpreende pelas mensagens embutidas em um contexto simples que permitem uma leitura ousada. Várias leituras, aliás, como demonstro a seguir. Não há nada do chavão comum em produções anteriores de ficção científica. O diretor Stanley Kubrick alinhou cenas inteligíveis com certa sequencia lógica, que começam com gorilas organizados em grupos, na aurora da humanidade, e terminam com um solitário astronauta perdido em Júpiter no ano 2001. O enredo, sim, é nebuloso, equivocante, ao contrário das citadas cenas e de outros elementos do filme. Não há monstros verdes que cospem fogo, muito menos garotas insinuantes de corpo escultural e com olho na testa, nem outras besteiras do gênero. Ao contrário, há fatos que se assemelham a nossa rotina terráquea. Por exemplo, momentos antes de o astronauta participar de uma reunião importante em determinado satélite, onde lhe seria explicada e confiada a secreta missão em Júpiter, ele conversa por videofone com a filhinha que ficou na Terra e faz a ela recomendações bem domésticas.

Já ultrapassamos 2001 faz 15 anos. Muitas das “previsões” implícitas no enredo do filme não aconteceram, outras, sim, e algumas foram além do previsto. Não importa. As propostas de Kubrick foram outras, por exemplo, cada vez que alguém assistisse ao filme teria um entendimento diferente ou nenhum, isto o filme conseguiu. Trata-se, pois, de um trabalho intrigante que permite sempre novas leituras. Por isto, mesmo hoje, 50 anos depois, seu filme está longe de esgotar-se.

Essa a razão pela qual me baseio nele para comentar certa passagem do último sarau da AJL (Academia Jacarehyense de Letras) que aconteceu no sábado, 27 de agosto, no Educa Mais, Centrom em Jacareí. O evento premiava poetas brasileiros e de países de língua portuguesa que participaram do “Concurso Internacional de Sonetos”. Fui o apresentador do sarau.

A garota do celular

A certa altura da apresentação eu fiquei irritado com uma jovem de seus 16 anos que, na plateia, não tirava os olhos do celular. Fixei-me nela carrancudo para que se tocasse, sem sucesso. A jovem continuou absorta no aparelho como se estivesse só. Em certo momento fez mais: passou a digitar, obviamente para trocar mensagens com alguém de fora. Com muito esforço me contive e resolvi deixar pra lá.
No momento da premiação, entretanto, aconteceu a surpresa. Ela representava um dos premiados que mora em outro estado, e eu não sabia. Ao mencionarmos o participante, a garota subiu ao palco e recebeu medalha por ele, como fizeram os demais representantes que a antecederam.

Recebida a medalha, cumpriu-se o rito: ela posicionou-se junto ao microfone para ler o soneto de seu poeta ausente, e aí aconteceu a novidade: a jovem declamou lendo o poema “pelo celular”. Entendi tudo. Antes (confirmei mais  tarde), ela não tirava os olhos do aparelho porque tão logo começara a premiação percebeu que era praxe o representante declamar o soneto do premiado e ela não havia trazido o do seu. Rapidamente, então, entrou em contato com o poeta, pelo celular, e pediu-lhe o texto que lhe foi enviado de pronto pelo aplicativo de mensagens. Tão rápido que ainda houve tempo para que ela permanecesse em seu lugar lendo o soneto várias vezes para não declama-lo de primeira leitura o que prejudicaria a interpretação.

Mais símbolos

Deu certo. Ela foi destaque na noite do sarau pela interpretação perfeita da leitura e pela imagem agradável emprestada àquele momento. Vivemos a cena de uma jovem a ler para a plateia adulta do presente um soneto clássico, em formato do passado, por meio da tecnologia moderna, monitorada pelo autor à distância e amparada pela plateia presente. Era o não-tempo a serviço da arte literária.

Foi vivido naquela apresentação um contraste à Stanley Kubrick, que semelhantemente musicou a trilha sonora de “2001”, filme futurista, com a introdução de “Assim Falou Zaratustra”(música de 1896), de Richard, e com a valsa “Danúbio Azul” (1866), de Johann, ambos Strauss embora não-parentes. Kubrick é assim. Mescla tudo num universo único em que tempo não existe. No sarau, nem se percebia o aparelho na mão da adolescente no momento em que ela declamava. Jovens, adultos, celular, plateia, academia, jacareienses e jacarehyenses, tudo formava um todo em nome da poesia.
Enquanto os demais líamos textos impressos elaborados dias antes em antigas folhas de sulfite, alguns escritos rabiscados à mão, a adolescente fez a lição de casa valendo-se da tecnologia de ponta. E com a liberdade, que a juventude lhe permite, de simbolizar a marcha ininterrupta da humanidade anunciando que o futuro será feito ao jeito delas, humanidade e jovem.

Para terminar, no filme aqui mencionado aparece por três vezes um grande e enigmático monólito negro. A pedra gigantesca emite sinais de Júpiter. Percebe-se que a partir de cada aparição do objeto o mundo torna-se outro. Esse monólito pode ser interpretado como um marco de novas eras. Curiosa é a semelhança da peça de pedra a um celular comum hoje, tanto pelo formato delgado como pela cor escura. Claro que em miniatura, mas tamanho não é problema para a tecnologia. Os primeiros computadores mal cabiam em uma sala e agora...

Minha constatação não esgota o enigma do filme “2001”, mas pode revelar que o celular é a quarta fase do monólito negro. Quem duvida que o mundo a partir dele já se mostra outro?