Naquela manhã quente de domingo,
26 de março, caminhava eu em direção ao prédio que fica bem na frente de uma
praça não muito tranquila da região central de Jacareí, onde moro. Era quase
meio-dia. O local, como todos os pontos do perímetro urbano, vive dominado por
moradores de rua daqueles que não demonstram a menor intenção de manter convivência
normal com quem é obrigado a cruzar por ali a pé. É comum o passante ser
abordado com pedidos de dinheiro ou ter de enfrentar cenas desagradáveis e até provocações.
A certa altura, notei um desses
pedintes caminhando do outro lado da pista dupla entre a praça e meu condomínio.
Ele seguia na mesma direção e me olhava fixamente. Eu precisava atravessar ali e
caminhar um trecho praticamente ao seu lado para atingir o prédio. Pelas
experiências que já tive em momentos assim, me veio a impressão de que eu
viveria uma das tais abordagens se fizesse a travessia. Esbravejei mentalmente
contra a prefeitura, a secretaria de atendimento social e contra todos quantos
eu me dou o direito de botar a culpa pela miséria perambulante da cidade.
Porém, antes de eu decidir se mudaria
o trajeto, se corria ou encarava a suposta abordagem, eis que para, bem na
minha frente, um carro sedan bem velho, acho que da década de 1990, desses de
pintura desbotada, cor indefinível, porta-malas com tampa de outra cor mais escura
destoante do destoado conjunto. Enfim, um daqueles monstrengos sobre rodas com
pneus carecas, tipo manjado que parece ter saído do ferro-velho naquele dia.
Dirigia a coisa, um motorista de barba por fazer, boné surrado e outros sinais
que nos colocam em guarda pelo que pode vir do semelhante.
Desnecessário é explicar o
“filme” que se me passou pela cabeça naquele momento e, enquanto eu pensava no
que fazer, o motorista, ignorando-me, acenou para o pedinte do outro lado aos
gritos e da forma que eu jamais imaginaria ouvir num cenário daqueles: “senhor!
Senhor!” Também surpreso, o maltrapilho parou e olhou para quem o chamava e ouviu
o do boné gritar-lhe amigavelmente: “o senhor está com fome?!” Ele acenou
afirmativamente com a cabeça. “Então vem cá!” disse-lhe o outro ainda em voz
alta.
O motorista desceu do carro para
ir ao encontro do pedinte que já estava próximo e, colocando a mão em seu ombro,
disse-lhe amigavelmente: “tem uma quentinha(*)
aqui pra você”. Conduziu-o até a parte de traz do carro, abriu a tampa escura
do porta-malas e tirou de lá uma sacola branca dessas descartáveis, de plástico,
com a tal quentinha. O pedinte
agarrou-a com exagerada firmeza. De onde eu permanecia imóvel, deu para ver que
o porta-malas do carro estava cheio de sacolas plásticas idênticas. Imaginei
que seria para entregá-las a outros famintos das ruas.
Olhei para o mendigo que já se
retirava dali com o passo mais firme, portando cuidadosamente o conteúdo que
lhe saciaria a fome. Caminhava como quem se sentia naquele momento um ponto
acima de sua aparência: um verdadeiro “cidadão em situação de rua” com dignidade;
não pela comida grátis, mas pela atenção com que fora tratado em sua miséria.
Deixou para trás o velho carrão
vermelho de tampa preta do porta-malas (sim,
embora desbotadas, de repente, dava para identificar bem as cores do velho
carro que adquiriu status de ‘salvador dos necessitados, como se o gesto
daquele motorista acrescentasse ainda mais luz àquele meio-dia ensolarado de
outono). Passou por mim sem me olhar e seguiu em frente para a
sobrevivência de mais um dia.
(*) quentinha ou marmitex, nome que se dá à embalagem de
alumínio com refeição para ser entregue em domicílios.